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São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2003

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ELEIÇÕES NA ARGENTINA

Trinta anos depois, ele voltará, como presidente, à praça onde viu o peronismo de esquerda chegar ao poder

Eleição culmina epopéia pessoal de Kirchner

DO ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

O dia 25 de maio, em que Néstor Carlos Kirchner assumirá a Presidência da Argentina, e a praça de Maio, onde fica a Casa Rosada, sede governamental, fazem parte da epopéia pessoal do até agora governador da Província de Santa Cruz, de 53 anos.
Há exatas três décadas, estudante de 23 anos, Kirchner estava na praça quando assumiu Héctor Cámpora, pondo fim a uma das muitas ditaduras da história argentina, instalada em 1966.
A eleição de Cámpora marcava o fim da proscrição do peronismo, decretada em 1955, quando foi deposto o general Juan Domingo Perón, criador do movimento de que Kirchner sempre fez parte.
Cámpora representava a ala esquerda do peronismo, a ponto de alguns militantes peronistas terem saído diretamente do cárcere para os ministérios, naqueles febris dias de 1973.
Mas o ano de 1973 é uma referência para Kirchner também pela lado negro de suas preferências políticas.
Na semana passada, o virtual novo presidente argentino pediu a Ricardo Lagos, presidente do Chile, que lhe mostrasse sinais no Palácio de la Moneda, sede governamental, da passagem por ali do socialista Salvador Allende, deposto também por um golpe militar em setembro de 1973. Allende suicidou-se para não se entregar aos golpistas.
Lagos contou como fora o bombardeio ao La Moneda, de onde vinham os aviões, os tiros. "E o que você disse?", perguntou a Kirchner o enviado especial do jornal "Página 12", seu subdiretor Martín Granovsky.
"Nada, para não chorar", respondeu Kirchner.
Por esses ícones, é possível definir Kirchner como social-democrata ou como um político da esquerda moderada. Pelo menos mais moderado do que na origem: foi da Juventude Peronista, uma espécie de braço político dos Montoneros, o grupo guerrilheiro que aderiu ao peronismo e foi destroçado pela ditadura do período 1976-83.

Comparações com o PT
Como social-democrata, Kirchner aproxima-se do novo PT. Mas o ponto de contato é só pelo rótulo. Como estrutura partidária e apoio na intelectualidade, o presidente virtualmente eleito não tem nada parecido. "Não tem nem um Antônio Cândido nem um Mário Pedrosa nem um Chico Mendes", diz Granovsky, referindo-se a dois intelectuais e ao sindicalista que são ícones do PT.
Tampouco é razoável compará-lo com Lula, ainda que ambos tenham a língua presa. Kirchner é mau orador, ao menos em atos públicos. Tímido, tudo o que Lula não é, sente-se mais à vontade nas conversas em pequenos grupos.
Outra diferença importante, esta a favor de Kirchner: o argentino tem experiência administrativa, ao contrário de Lula. É governador da remota Província de Santa Cruz e está no seu terceiro mandato.
Um governador bem-sucedido. "Trata-se da Província com melhor distribuição de renda e com menos quantidade de pobres depois da capital federal", disse o sociólogo Artemio López ao jornal "Página 12".
A oposição, no entanto, o acusa de fazer, na Província, o que critica no âmbito nacional: é autoritário e anula, na prática, os dois outros Poderes.
Há também uma acusação de manobra com fundos provinciais, que estão depositados no exterior. Kirchner reconhece que fez os depósitos em três bancos suíços (no valor de US$ 530 milhões), mas diz que os juros recebidos "vão diretamente para o Orçamento".

O "Lupin"
A experiência em Santa Cruz, no entanto, não serve de referência para quem vai ser presidente da República.
Santa Cruz é pequena (cerca de 200 mil habitantes), tem petróleo (e as receitas que dele decorrem para os cofres públicos) e atrações turísticas que facilitam arrecadar dinheiro.
A Argentina, ao contrário, está quebrada. Pior: Kirchner chega à Casa Rosada quatro anos antes do que imaginava.
Ele mesmo tem dito frequentemente que só pretendia candidatar-se em 2007. Um conjunto de acidentes políticos abriu-lhe antecipadamente as portas do poder, mas a um custo elevado: dos 4.312.528 votos que recebeu no primeiro turno (22,24% do total), poucos são próprios, até porque é um político mal conhecido no âmbito nacional.
Votaram nele os que queriam evitar o retorno de Menem, os que tinham restrições às outras alternativas e os fiéis de Eduardo Duhalde, atual presidente e cacique histórico da Província de Buenos Aires, a maior do país.
Sua passagem ao segundo turno se deve exatamente aos votos da Província, em que ficou em primeiro lugar, com 25,2%, embora sua implantação pessoal seja mínima nessa região.
É por isso que um dos comentários mais difundidos nos meios de comunicação argentinos fala da perspectiva de que o novo presidente se torne um pouco refém de Duhalde, hipótese que Kirchner rejeita com vigor, como é óbvio.
De todo modo, não tem uma equipe própria e, além disso, conhece muito pouco o mundo.
Talvez seja o único argentino de classe média que jamais havia ido ao Brasil. Conheceu-o na semana passada, para encontrar-se com Lula.
Sua ascensão será, em tese, a reconstituição do que se chamou, à época, de "peronismo renovador", uma corrente destinada a dar um tom centro-esquerdista e menos personalista ao movimento que foi a mais bem-sucedida versão do populismo na América Latina.
Dessa corrente surgiu a Frepaso (Frente País Solidário), que, em coligação com a centenária União Cívica Radical, formou a Aliança e elegeu Fernando de la Rúa, o desastrado presidente forçado a fugir da Casa Rosada de helicóptero, há um ano e meio.
Descendente de suíços e alemães, por parte do pai, e de católicos croatas, pelo lado materno, ganhou o apelido de "Lupin", quando militava na Juventude Peronista, por ser supostamente parecido com um personagem da revista em quadrinhos "Rico Tipo", tremendo sucesso da época.
É casado desde 1975 com a hoje senadora Cristina Fernández, com quem tem dois filhos, Máximo, 26, e Florencia, 13.
Juntos militaram na Juventude Peronista, juntos fizeram a vida política, juntos chegam à Casa Rosada, exatos 30 anos depois daquele dia épico para o jovem "Lupin", que, do meio da histórica praça de Maio, aplaudia o presidente Héctor Cámpora quando este apareceu no balcão. Agora, o balcão é dele. (CLÓVIS ROSSI)


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