|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ELEIÇÕES NA ARGENTINA
Trinta anos depois, ele voltará, como presidente, à praça onde viu o peronismo de esquerda chegar ao poder
Eleição culmina epopéia pessoal de Kirchner
DO ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES
O dia 25 de maio, em que Néstor Carlos Kirchner assumirá a
Presidência da Argentina, e a praça de Maio, onde fica a Casa Rosada, sede governamental, fazem parte da epopéia pessoal do até
agora governador da Província de
Santa Cruz, de 53 anos.
Há exatas três décadas, estudante de 23 anos, Kirchner estava na
praça quando assumiu Héctor
Cámpora, pondo fim a uma das
muitas ditaduras da história argentina, instalada em 1966.
A eleição de Cámpora marcava
o fim da proscrição do peronismo, decretada em 1955, quando
foi deposto o general Juan Domingo Perón, criador do movimento de que Kirchner sempre fez parte.
Cámpora representava a ala esquerda do peronismo, a ponto de
alguns militantes peronistas terem saído diretamente do cárcere
para os ministérios, naqueles febris dias de 1973.
Mas o ano de 1973 é uma referência para Kirchner também pela lado negro de suas preferências políticas.
Na semana passada, o virtual novo presidente argentino pediu
a Ricardo Lagos, presidente do
Chile, que lhe mostrasse sinais no
Palácio de la Moneda, sede governamental, da passagem por ali do
socialista Salvador Allende, deposto também por um golpe militar em setembro de 1973. Allende suicidou-se para não se entregar
aos golpistas.
Lagos contou como fora o bombardeio ao La Moneda, de onde
vinham os aviões, os tiros. "E o que você disse?", perguntou a
Kirchner o enviado especial do jornal "Página 12", seu subdiretor
Martín Granovsky.
"Nada, para não chorar", respondeu Kirchner.
Por esses ícones, é possível definir Kirchner como social-democrata ou como um político da esquerda moderada. Pelo menos
mais moderado do que na origem: foi da Juventude Peronista,
uma espécie de braço político dos
Montoneros, o grupo guerrilheiro
que aderiu ao peronismo e foi
destroçado pela ditadura do período 1976-83.
Comparações com o PT
Como social-democrata, Kirchner aproxima-se do novo PT. Mas
o ponto de contato é só pelo rótulo. Como estrutura partidária e
apoio na intelectualidade, o presidente virtualmente eleito não tem
nada parecido. "Não tem nem um
Antônio Cândido nem um Mário
Pedrosa nem um Chico Mendes",
diz Granovsky, referindo-se a
dois intelectuais e ao sindicalista
que são ícones do PT.
Tampouco é razoável compará-lo com Lula, ainda que ambos tenham a língua presa. Kirchner é mau orador, ao menos em atos
públicos. Tímido, tudo o que Lula
não é, sente-se mais à vontade nas
conversas em pequenos grupos.
Outra diferença importante, esta a favor de Kirchner: o argentino
tem experiência administrativa, ao contrário de Lula. É governador da remota Província de Santa Cruz e está no seu terceiro mandato.
Um governador bem-sucedido.
"Trata-se da Província com melhor distribuição de renda e com
menos quantidade de pobres depois da capital federal", disse o sociólogo Artemio López ao jornal "Página 12".
A oposição, no entanto, o acusa
de fazer, na Província, o que critica no âmbito nacional: é autoritário e anula, na prática, os dois outros Poderes.
Há também uma acusação de
manobra com fundos provinciais,
que estão depositados no exterior.
Kirchner reconhece que fez os depósitos em três bancos suíços (no
valor de US$ 530 milhões), mas
diz que os juros recebidos "vão diretamente para o Orçamento".
O "Lupin"
A experiência em Santa Cruz,
no entanto, não serve de referência para quem vai ser presidente
da República.
Santa Cruz é pequena (cerca de
200 mil habitantes), tem petróleo
(e as receitas que dele decorrem
para os cofres públicos) e atrações
turísticas que facilitam arrecadar
dinheiro.
A Argentina, ao contrário, está
quebrada. Pior: Kirchner chega à
Casa Rosada quatro anos antes do
que imaginava.
Ele mesmo tem dito frequentemente que só pretendia candidatar-se em 2007. Um conjunto de acidentes políticos abriu-lhe antecipadamente as portas do poder,
mas a um custo elevado: dos 4.312.528 votos que recebeu no
primeiro turno (22,24% do total),
poucos são próprios, até porque é
um político mal conhecido no
âmbito nacional.
Votaram nele os que queriam
evitar o retorno de Menem, os que
tinham restrições às outras alternativas e os fiéis de Eduardo Duhalde, atual presidente e cacique
histórico da Província de Buenos
Aires, a maior do país.
Sua passagem ao segundo turno
se deve exatamente aos votos da
Província, em que ficou em primeiro lugar, com 25,2%, embora
sua implantação pessoal seja mínima nessa região.
É por isso que um dos comentários mais difundidos nos meios de
comunicação argentinos fala da
perspectiva de que o novo presidente se torne um pouco refém de
Duhalde, hipótese que Kirchner
rejeita com vigor, como é óbvio.
De todo modo, não tem uma
equipe própria e, além disso, conhece muito pouco o mundo.
Talvez seja o único argentino de
classe média que jamais havia ido
ao Brasil. Conheceu-o na semana
passada, para encontrar-se com
Lula.
Sua ascensão será, em tese, a reconstituição do que se chamou, à
época, de "peronismo renovador", uma corrente destinada a
dar um tom centro-esquerdista e
menos personalista ao movimento que foi a mais bem-sucedida
versão do populismo na América
Latina.
Dessa corrente surgiu a Frepaso
(Frente País Solidário), que, em
coligação com a centenária União
Cívica Radical, formou a Aliança
e elegeu Fernando de la Rúa, o desastrado presidente forçado a fugir da Casa Rosada de helicóptero, há um ano e meio.
Descendente de suíços e alemães, por parte do pai, e de católicos croatas, pelo lado materno, ganhou o apelido de "Lupin",
quando militava na Juventude Peronista, por ser supostamente parecido com um personagem da revista em quadrinhos "Rico Tipo", tremendo sucesso da época.
É casado desde 1975 com a hoje
senadora Cristina Fernández,
com quem tem dois filhos, Máximo, 26, e Florencia, 13.
Juntos militaram na Juventude
Peronista, juntos fizeram a vida
política, juntos chegam à Casa
Rosada, exatos 30 anos depois daquele dia épico para o jovem "Lupin", que, do meio da histórica
praça de Maio, aplaudia o presidente Héctor Cámpora quando
este apareceu no balcão. Agora, o
balcão é dele. (CLÓVIS ROSSI)
Texto Anterior: Menem contaminou a eleição, diz historiador Próximo Texto: Renúncia faz Menem ser visto como covarde Índice
|