São Paulo, quarta-feira, 16 de janeiro de 2002

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ANÁLISE

Presidente fez da calamidade algo ainda pior

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

Eduardo Duhalde é um homem notável. Em duas semanas como presidente, ele demonstrou por que não se pode confiar a economia da Argentina aos seus políticos.
Em seu breve período no poder, Duhalde transformou um desastre com vislumbres de esperança em um desastre que, tudo indica, vai terminar ainda pior: em uma depressão profunda, seguida pelo retorno de uma inflação muito elevada.
O julgamento talvez pareça precipitado. Duhalde, afinal, não é responsável pelas políticas que causaram a moratória da dívida pública argentina e o colapso do sistema de conversibilidade. E tampouco é responsável pelo fracasso de seus predecessores, que não agiram mais rápido quando essas ameaças começaram a se aproximar.
Mas Duhalde pode ser culpado pela retórica populista e pelas políticas irresponsáveis que certamente tornarão a crise mais grave do que ela precisaria ser. E já é certo que será ruim. A moratória da dívida pública danifica o sistema financeira, causa perdas substanciais para o público argentino e agrava a já antiga recessão do país, a médio e longo prazos.
Uma grande depreciação real, por mais importante que seja para a recuperação da economia no longo prazo, sempre agrava a situação no curto prazo.
As exportações respondem por cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) da Argentina. O efeito estimulante de uma depreciação, portanto, não basta para compensar o impacto da moratória do setor público e das falências causadas pela desvalorização.
No entanto, a gravidade desses riscos torna essencial que o governo adote uma abordagem política sóbria e sistemática. Que evite medidas mal pensadas, retórica exagerada e gestos irresponsáveis. O governo precisa reduzir o pânico, não aumentá-lo. O que vimos até agora foi o oposto.
O peso foi desvalorizado, numa decisão audaciosa e compreensível. Mas o governo introduziu uma complexa taxa dupla de câmbio -um câmbio oficial fixo e uma taxa extra-oficial móvel. Isso torna necessária a criação e manutenção de controles de câmbio conducentes à corrupção. O sistema não vai durar. Na verdade, não merece durar.
Com esse histórico e a natural falta de confiança no peso, a moeda corre o risco de entrar em um colapso incontrolável. Para detê-lo, o governo deveria ter introduzido uma âncora alternativa e, ao mesmo tempo, desvalorizado a moeda. Também teria sido fundamental adotar metas inflacionárias e criar um banco central independente. Nada disso foi feito.
Pior ainda: em um gesto populista, o governo transformou os empréstimos de valor inferior a US$ 100 mil em dívidas denominadas em pesos, sem reajuste. Isso traz consequências devastadoras para um sistema bancário que um dia foi bem capitalizado. No momento, os analistas acreditam que a conversão desequilibrada dos pesos pode custar ao bancos até US$ 9 bilhões.
Para agravar ainda mais o que já era ruim, o governo se comprometeu a manter o valor em dólar dos depósitos. No entanto, sabe que os bancos e os cofres públicos não dispõem dos fundos necessários para cumprir esse compromisso. Na prática, com os saques limitados a US$ 500 mensais em conta corrente, as poupanças em dólar estão congeladas. Até mesmo os saques em pesos estão limitados ao valor 1,5 mil pesos (US$ 1,07 mil) mensais.
Uma vez mais, controles de preços foram impostos à infra-estrutura. Um imposto especial vai incidir sobre o setor petroleiro. Alguns ajustes nos regimes de preços vinculados ao dólar eram justificados. Mas essas medidas arbitrárias destruirão ainda mais a confiança dos investidores de longo prazo. A Argentina parece ter esquecido: para obter a assistência internacional de que precisa desesperadamente, depende do apoio dos países de onde vieram esses investidores.
Por fim, mas não menos importante, o novo presidente recorreu a retórica protecionista em um país comprometido com uma grande desvalorização. Essa desvalorização deveria beneficiar primeiro os produtores de bens e serviços exportáveis. Protecionismo, nas atuais circunstância, é contraproducente.
O que isso tudo representa para a economia? O dano que o governo de Duhalde causou aos bancos, em especial, vai reduzir ainda mais o crédito e o investimento. O agravamento da recessão solapará as finanças públicas. Sem crédito, o governo será forçado a usar as impressoras para colocar dinheiro no mercado, criando as condições para o colapso da moeda argentina.
Esse é o pesadelo que aguarda o país. Não será possível evitá-lo de todo. Mas é preciso que haja um esforço para reduzir sua duração e, o mais importante, garantir uma recuperação forte e sustentada. Os elementos para isso parecem bem claros. O governo precisa estabelecer um regime monetário confiável. As alternativas: dolarização a taxa depreciada ou a fixação de uma meta para a inflação controlada por um banco central confiável e independente. Dados os acontecimentos das últimas semanas, a primeira dessas opções é muito melhor.
Independente da escolha, o governo precisa tratar a moeda em que estão os depósitos bancários da mesma maneira que trata os empréstimos. Precisa também desenvolver um plano fiscal confiável e iniciar negociações de boa fé junto aos credores internacionais. É preciso, especialmente, que ele reconheça a necessidade de reduzir os regulamentos que pesam sobre as empresas e abrir a economia, a fim de garantir níveis de emprego mais elevado e ganhos de produtividade.
Se o governo seguir essa rota, precisará de ajuda externa. Antes da moratória, o apoio do Fundo Monetário Internacional (FMI) ao país foi um erro. Empréstimos do FMI seriam inúteis, também, na falta de uma abordagem mais séria. Mas deixar de ajudar o país, caso ele escolha políticas que têm chance de restaurar a prosperidade, também seria um erro. O dinheiro será desesperadamente necessário, acima de tudo para recapitalizar o sistema bancário. O governo precisa mudar de rumo agora.


Tradução de Paulo Migliacci


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