São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2004

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ÁFRICA

Para o brasileiro José Henrique Fischel, que trabalha no Chade, perto do Sudão, árabes e não-árabes cometem atrocidades

Violência é generalizada em Darfur, diz ONU

EDUARDO SCOLESE
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Na fronteira do Chade com o Sudão, palco de uma crise humanitária decorrente da guerra civil sudanesa, existem 11 acampamentos da ONU para receber os refugiados do conflito. Um deles, no povoado chadiano de Bahai, é chefiado por um brasileiro -José Henrique Fischel, 35, professor de direito internacional da Universidade de Brasília e oficial de carreira do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados.
O conflito em Darfur (região oeste do Sudão) começou em 2003, com o ataque de grupos rebeldes a alvos do governo. Os rebeldes, à época, acusavam o governo de privilegiar os grupos de origem árabe -que dominam o norte do país.
Para responder aos ataques, o governo teria armado um grupo árabe, chamado Janjaweed, que, na seqüência, promoveu assassinatos, saques e estupros contra os negros não-árabes. Ao menos 1 milhão de pessoas deixaram suas casas. Segundo Fischel, porém, as atrocidades cometidas pela milícia em Darfur ocorrem da mesma forma do lado não-árabe.
Na semana passada, Fischel falou à Folha, por telefone, de Genebra, onde passou três dias para acertar detalhes operacionais com o comando da ONU. Ele desembarcou no Chade no início de agosto e deve ficar até novembro.

ACAMPAMENTO
Fischel está no acampamento Oure Cassoni. Há um grande lago que abastece os 20 mil refugiados do acampamento, localizado no povoado de Bahai -a 5 km, em linha reta, do Sudão. De carro, a distância aumenta para 17 km.
"Do lado sudanês da fronteira estão os deslocados internos. Os que cruzaram a fronteira é que são os refugiados. Ambos, porém, fogem dos milicianos."
Fischel diz que cerca de 190 mil pessoas ocupam os 11 acampamentos da ONU na região nordeste do Chade. Desde que foi criado, em julho, o Oure Cassoni recebe 50 pessoas por dia.

ESTRUTURA
O acampamento, segundo Fischel, é dividido em zonas. "Elas observam a origem étnica dos refugiados. Todos lá têm a mesma etnia, zagawa, mas de tribos diferentes. Alguns estão acostumados a viver em povoados, e outros têm vida mais nômade."
Em cada zona, há uma mesquita (são todos muçulmanos sunitas). Há postos de saúde e de distribuição de água, escolas e tendas usadas como moradias. A água tirada do lago é tratada e estocada em grandes "bexigas", com capacidade para 20 mil litros. Há equipamentos especiais para a limpeza do lixo e das carcaças dos animais.
Sobre o clima desértico, Fischel diz que o normal é a temperatura subir a 45C durante o dia e recuar à casa dos 5C à noite. "Em dezembro e janeiro, chega a ter um pouco de gelo pela manhã. Mas há estrutura, temos tapetes e cobertores nas tendas."
Fischel conta que, no início, por causa dos fogões à lenha instalados no acampamento, criou-se uma certa tensão entre os refugiados e a população local. "Tivemos de correr atrás de doadores de fogões a querosene. Os refugiados estavam usando toda a madeira disponível na região para abastecer os fogões, o que criou certa tensão com os moradores, que usam a madeira para cozinhar e para se aquecer no inverno."

ÁGUA
A idéia da ONU, segundo Fischel, é expandir o acampamento deserto adentro, pois o Oure Cassoni já está com sua capacidade máxima -20 mil pessoas.
O problema, que tende a ser dramático em breve, é a pouca quantidade de água. "Não há disponibilidade de água para essas pessoas. A água vem de um lago artificial e sazonal. Receamos que, em dezembro, essa fonte já não seja suficiente para a quantidade de pessoas. Uma possibilidade é reposicionar o acampamento."

SEGURANÇA
Na ONU, há uma regra segundo a qual os acampamentos de refugiados devem estar instalados, no mínimo, a 50 km da fronteira. Isso, porém, não ocorre com o Oure Cassoni. "A proximidade [17 km por via terrestre] faz com que tenhamos risco de intervenções, incursões. Se os milicianos quiserem atacar os refugiados, isso fica mais fácil de acontecer."
Fischel relata que os milicianos não-árabes do lado sudanês da fronteira acabam protegendo o acampamento de eventuais ataques árabes. "Hoje, eles acabam sendo uma espécie de segurança dos acampamentos." A segurança direta fica por conta de soldados chadianos, norte-americanos e franceses.

VILAS FANTASMAS
O fluxo de refugiados para os acampamentos da ONU tem diminuído a cada dia. Isso porque, segundo Fischel, um acordo de cessar-fogo tem sido "satisfatoriamente observado".
Não há, porém, nenhum tipo de movimentação de refugiados retornando às suas casas no Sudão. "As casas foram destruídas e não há a garantia de segurança." E a explicação de Fischel sobre segurança é, no mínimo, inusitada: "Aparentemente, o governo sudanês contratou os próprios milicianos do Janjaweed para providenciar a segurança desses deslocados. Deram uniforme e armas aos milicianos. Eles [os negros não-árabes] não se sentem seguros o suficiente para poder retornar aos seus locais de origem".
A cidades sudanesas próximas à fronteira estão vazias. "São vilas fantasmas, exatamente."

ATROCIDADES
Na mídia, em geral, o que aparece são as atrocidades cometidas pelas milícias árabes. Mas Fischel ressalta um outro lado do confronto: "O que nós estamos naturalmente vendo e o que tem sido publicado são as ações do Janjaweed. Mas é óbvio que os rebeldes também violam os direitos humanos. Só que isso não sai publicado. O interesse agora é o foco no governo sudanês, ou seja, na responsabilidade estatal com a observância das normas".
O acampamento Oure Cassoni, segundo Fischel, é formado basicamente por crianças e mulheres. "É um acampamento extremamente tranqüilo, até mesmo porque 93% dele é composto por mulheres e crianças. Os homens ficam tomando conta das vilas. Eles [os milicianos Janjaweed] não matam as mulheres, só violam. Com relação aos homens, a idéia é realmente matar. Muitas chegam aos acampamentos vítimas de estupro. E crianças do sexo masculino eles também matam, vendo-as como um inimigo futuro."

ALIMENTAÇÃO
No cardápio dos refugiados há açúcar, sal, arroz, óleo e uma mistura de milho, soja e feijão, além de sorgo (derivado do milho, que, misturado à água, transforma-se num pão). "Eles que se viram. Não comem cavalo, carneiro, burro. Eles não utilizam nenhuma dessas carnes, apesar de existir em abundância." A única preocupação, em termos de saúde, é com a malária.


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