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São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003

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Romeu e Julieta no Iraque


O Exército dos EUA é contra o casamento de um militar do país com uma iraquiana; ela, por sua vez, já foi ameaçada por iraquianos, que não admitem essa controversa relação


MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Não há Capuletos nem Montéquios no Iraque, mas a história do sargento da Guarda Nacional da Flórida Sean Blackwell e de sua mulher, a iraquiana E.A. -que não quis ser identificada por uma questão de segurança-, lembra a tragédia de William Shakespeare.
Desde seu casamento, ocorrido em Bagdá, em 17 de agosto último, ambos não puderam mais encontrar-se por conta da oposição do Exército americano a seu relacionamento. Blackwell, 27, foi punido por desobedecer a uma ordem direta de seus superiores ao levar adiante seu plano de unir-se oficialmente a E.A., 25.
Todavia, de acordo com ele, o amor falou mais alto. "Ela é, de longe, a mulher mais surpreendente que já conheci", afirmou Blackwell, que está proibido de falar com a imprensa, à Folha.
Por outro lado, E.A. não se sente segura em Bagdá, pois uma parte significativa da população local é contrária à união de uma iraquiana a um militar dos EUA. "Sua segurança está em perigo no Iraque. Muitos iraquianos não vêem com bons olhos sua ligação com um americano", avaliou Vickie McKee, mãe do sargento.
E.A. não quer, porém, comentar o tema: "Não quero falar sobre as ameaças que enfrento atualmente. Desculpe-me". Contudo um pedido feito por ela deixa transparecer sua preocupação: "Gostaria de encontrar uma organização brasileira de defesa das mulheres que aceitasse acolher-me no país enquanto não obtenho um visto para viver nos EUA. Isso levará tempo, e estou verdadeiramente em perigo aqui", reconheceu.
Para Richard Alvoid, seu advogado americano -que cuida de seu processo de imigração-, os "procedimentos são lentos, porém há boas chances de que o casal possa viver legalmente nos EUA em um ou dois anos". "O casamento deles é totalmente legal."
A história de amor teve início duas semanas depois que Blackwell chegou ao Iraque, "no final de abril ou no começo de maio". "Tudo aqui é uma espécie de borrão. Não consigo, portanto, lembrar-me da data exata de minha chegada ao Iraque", disse.
E.A., que é oriunda de Bagdá, mas trabalhava como médica residente em Kut (sudeste do país), buscava uma transferência para a capital, onde o regime do ex-ditador Saddam Hussein já tinha sido deposto. A idéia lógica, segundo ela, foi "procurar um posto no Ministério da Saúde".
Foi quando o destino os colocou frente a frente. Blackwell trabalhava na segurança do órgão. "A transferência não era possível naquele momento. Busquei, então, arrumar um emprego para ela em minha unidade, e a tentativa deu certo", explicou o sargento.
A médica, fluente em inglês, foi contratada como tradutora pelos militares americanos. "Começamos a passar bastante tempo juntos, e, como ela disse que queria continuar a me ver, pedi permissão a meu superior para que pudéssemos nos encontrar. Nos três meses subsequentes, ficamos cada vez mais íntimos e nos apaixonamos", afirmou Blackwell.

Casamento
No final de julho, o casal decidiu que havia chegado a hora de oficializar sua união. "Quando decidimos nos casar, Sean teve de converter-se ao islamismo para que pudéssemos fazer tudo dentro da lei iraquiana. Aparentemente, todos em sua unidade ficaram contentes com a notícia de nosso casamento", disse E.A.
O sargento pediu autorização a seus superiores para casar-se com a iraquiana, mas ela foi negada. "Quando a papelada já estava quase pronta, o comandante de seu batalhão [o tenente-coronel Thad Hill] proibiu nosso casamento. Isso mesmo que a cerimônia fosse marcada para um dia de folga de Sean", expôs a médica.
Num momento de incertezas, o casal decidiu levar a cabo sua intenção. De acordo ela, para "provar ao mundo todo que o amor" que os une "é forte". Blackwell, que era cristão, aceitou converter-se ao islamismo. "Isso foi arriscado, pois um major da unidade de meu filho já dissera que "cristãos e muçulmanos não se misturam'", afirmou McKee. Essa afirmação não pôde ser comprovada.
Para tanto, contudo, o sargento foi compelido a desobedecer à ordem de seus superiores e a revelar à sua futura mulher o caminho de sua patrulha para que a cerimônia pudesse ser realizada.
Na verdade, houve dois casamentos ao mesmo tempo. O cabo Brett Dagen, 37, também da Guarda Nacional da Flórida, uniu-se a outra médica iraquiana. Todavia, segundo McKee e E.A., as dificuldades da situação "já venceram o amor dos dois".
Quando a patrulha passava por uma rua de Bagdá, a noiva e um juiz iraquiano surgiram, e Blackwell deixou seu grupo brevemente para oficializar sua união com ela. "Foi uma cerimônia rápida, no jardim de um restaurante. Aquele dia nunca sairá dos meus pensamentos", relatou E.A.
Desde então, os dois nunca mais se viram. Blackwell foi confinado à sua base em Bagdá "de 29 de agosto a 28 de setembro", de acordo com seu próprio testemunho. O Pentágono não revelou o período exato de sua punição.

Familiares
Ao contrário do caso dos protagonistas da tragédia de Shakespeare, o sargento americano e a médica iraquiana contam com o apoio de seus familiares. "Minha família está do meu lado e só diz que devo seguir o que pede meu coração", afirmou E.A., que trabalha hoje como tradutora para uma firma americana e sustenta que o Exército impede seu marido de entrar em contato com ela.
"No início, fiquei com medo de que o choque cultural fosse grande demais. Porém, assim que passei a ter contato com minha nora, percebi que ela é uma mulher adorável, que tem tudo para fazer meu filho feliz", disse McKee.
Diferentemente do destino de Romeu e Julieta, o casal acredita que o futuro lhe reserve algo "muito especial" nos EUA. "Luto por liberdade e pelos direitos de meu marido", explicou a médica.
"Creio que nossa união vá durar para sempre. A cultura dela não permite o divórcio, e Deus sabe que eu não suportaria outro", disse Blackwell, que é divorciado e pretende formar-se em nutrição.
Mas o casal está magoado com alguns militares dos EUA. "Estou no Exército há oito anos. Sinto-me traído por uma instituição na qual depositava minha confiança. Mas não sou contrário ao Exército, já que a decisão foi só de meus superiores, não das Forças Armadas", admitiu o sargento.
Ele trabalha hoje com os futuros policiais do Iraque e pode deixar sua base, mas ainda não tem o direito de encontrar sua mulher.


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