São Paulo, segunda-feira, 17 de janeiro de 2005

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ENTREVISTA DA 2ª

PHILIP ZIMBARDO

Para Philip Zimbardo, violência em prisão no Iraque aconteceu por "fatores sistêmicos e influência"

"Abu Ghraib foi só o começo", diz psicólogo

SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA

Quando cenas de prisioneiros iraquianos encapuzados e obrigados por soldados norte-americanos a posar de braços abertos sobre caixotes de madeira e a realizar outros atos humilhantes foram divulgadas pelos meios de comunicação em meados de 2004, Philip Zimbardo teve uma sensação estranha.
"Eu já vi isso em algum lugar", pensou. O déjà vu tinha razão de ser. O renomado psicólogo norte-americano de 72 anos, um dos autores da "Teoria da Janela Quebrada", tinha visto algo semelhante, sim, há 33 anos, quando conduziu um estudo que ficaria mundialmente conhecido como a "Experiência da Prisão".
Então na Universidade Stanford, Zimbardo colocou um grupo de estudantes voluntários num ambiente fechado, dividiu-os em "guardas" e "prisioneiros" e, em menos de três dias, teve de interromper a experiência que duraria duas semanas por conta de maus-tratos cometidos pelos primeiros contra os segundos (leia texto nesta página).
Com o caso dos maus-tratos na prisão iraquiana de Abu Ghraib e os que se sucederam a esses, a experiência de Zimbardo voltou ao centro dos debates. E o psicólogo teve de criar às pressas uma palestra, intitulada "The Psychology of "Evil" and the Politics of Fear" (a psicologia do "mal" e as políticas do medo), que vem dando por todo o país desde então.
Nela, Zimbardo discorda da desculpa, oferecida pelo Pentágono, das "poucas maçãs podres", ou seja, da exceção de mau comportamento num grupo de mais de 100 mil soldados norte-americanos atualmente em ação no Iraque, que afinal estariam agindo conforme as regras.
"Não são algumas maçãs, é toda a cesta que apodreceu", disse. Segundo ele, as pessoas cometeriam violência por três fatores: predisposição, causada por patologias ou defeitos de caráter; situação, quando os indivíduos são influenciados pelos que estão ao redor; e fatores sistêmicos, que são o contexto político ou estratégico em que o crime é cometido.
"Foi por estes dois últimos motivos que Abu Ghraib aconteceu", disse ele em entrevista à Folha por meio de várias trocas de e-mails entre suas palestras e aulas. "E pode acontecer de novo." De qualquer maneira, silenciosamente, o Pentágono vem mostrando o documentário sobre a experiência de Zimbardo de 1971 para futuros guardas de prisões iraquianas. Leia a seguir os principais tópicos da entrevista:

 

POLÍTICAS DO MEDO - "O governo de George W. Bush manipula a ansiedade nacional causada pelo 11 de Setembro a serviço de suas próprias ambições políticas. Essa administração só foi reeleita porque criou o que chamamos no jargão de "Síndrome do Estresse Pós-Traumático". É similar à metáfora do "papai sabe-tudo". O mundo é um lugar perigoso, e os cidadãos precisam da proteção de um pai forte, poderoso e moral para defendê-los. E como vamos fazer os norte-americanos acreditarem que o mundo é um lugar muito perigoso? Que tal se instilarmos medo neles propositalmente, criando um sistema de cores que os deixe cada vez mais ansiosos e os faça querer uma segurança cada vez maior e, conseqüentemente, necessitar cada vez mais de nós? Por isso as instruções e recomendações da Casa Branca são simplistas e confusas. Não precisamos de um ataque terrorista, porque nós mesmos estamos fazendo todo o trabalho para eles."

PSICOLOGIA DO "MAL" -"Meus colegas e eu recentemente publicamos nossa conclusão baseada nos depoimentos do livro "Tortura Nunca Mais" e também em entrevistas com ex-torturadores brasileiros e gregos e ex-membros dos chamados "esquadrões da morte" que passaram anos em suas então novas funções de transformar a resistência em colaboração ou eliminar eficientemente inimigos da ditadura militar que então havia se instalado naqueles países nos anos 60 e 70. Queríamos descobrir o que faz homens comuns virarem monstros capazes de atos horrendos. Eles dependem de impulsos sádicos e um histórico de sociopatas? Eram más sementes que produziram maus frutos? Ou foram programados por outros funcionários do Estado?
Nós conseguiríamos identificar e isolar um conjunto de condições externas, variáveis sociais que contribuíram para a formação desses torturadores? Para o torturador e o torturado, há sempre um grau de relação pessoal envolvida. É essencial saber que tipo de tortura empregar, qual a intensidade. Com o tipo errado ou muito leve, não há confissão. Com o oposto, pode haver a morte antes da confissão. Em ambos os casos, o torturador fracassará e os chefes não ficarão satisfeitos.
Descobrimos que superiores e companheiros dos torturadores compensavam enormemente aquele que obtinha bons resultados por ter selecionado o tipo e o grau certo de tortura. Então, percebemos que aqueles com traços sádicos acabam sempre se sobressaltando no momento da escolha de quem vai torturar. Depois, ficou evidente que nenhum desses militares/policiais tinha nenhum histórico de patologia que os qualificasse para este tipo de trabalho. Aí, vimos que havia uma série de processos de psicologia social envolvidos na transformação de funcionários públicos comuns em torturadores terríveis: o ambiente de trabalho, a recompensa pelos superiores, a dinâmica de grupo, a camaradagem, a coesão, o ambiente de segredo, o sentimento de pertencer a um grupo exclusivo, o fator "macho", tudo isso contribuía na transformação.
Por fim, o fato de os torturáveis serem de um grupo "diferente" dos torturadores, "condenado" por seu pensamento. Embrulhando todo esse pacote, o sentimento de urgência, a necessidade da pressa na obtenção de informações para vencermos essa "guerra" contra os "inimigos", transmitida pelos altos escalões a suas tropas.
Vê algum paralelo com a situação atual? A ironia é que os EUA não só apoiaram como ajudaram a refinar a tecnologia da tortura em muitos países latino-americanos nessa época. No entanto, o uso dessa mesma prática agora, em Abu Ghraib e talvez na base militar de Guantánamo e em outras, parece ser algo inédito e único na história de nosso país. Claro que excessos foram cometidos ao longo dos anos, mas agora a situação é única quando o presidente muda a lei para autorizar a prática, quando o secretário da Defesa estabelece regras para a obtenção de informações de detentos. É isso que significa a cesta estar podre. Não são as poucas maçãs que agiram com excesso; o excesso vinha autorizado e legitimado desde lá de cima, e é lá que deve ser responsabilizado."

PARALELOS COM "A EXPERIÊNCIA" DE 1971 -"Resumindo, quando pessoas comuns são colocadas num ambiente novo, como em prisões, Ambiente Vence, Pessoas Perdem. É uma verdade que vem sendo confirmada na maioria dos estudos sérios de psicologia social dos últimos 40 anos. A cultura norte-americana é obcecada pelo indivíduo, focada excessivamente nos atributos pessoais, tais como genes, predisposição, patologias. No entanto, em muitas ocasiões o comportamento humano está sob controle de forças sociais irresistíveis, que não precisam estar necessariamente dentro das pessoas. Cito o romance "O Senhor das Moscas" (Lord of the Flies, 1962), do prêmio Nobel britânico William Golding, como exemplo do poder do anonimato induzido no comportamento de bons rapazes. Bastou mudar o ambiente que os cercava (no caso, uma ilha deserta sem adultos após um desastre aéreo) para transformar bem-nascidos estudantes ingleses em assassinos."


ABU GHRAIB -
"Fiquei horrorizado com aquelas imagens de soldados norte-americanos fazendo aquilo, mas devo dizer que não me surpreendi. Na verdade, antecipei aquilo e prevejo que veremos outras, e as próximas serão piores, já que o processo de degradação continua. Os soldados logo se chatearão com as "velhas brincadeiras" e sentirão a necessidade de inventar novos "jogos". Da sodomia simulada veremos imagens de sodomia de verdade, prisioneiros sendo obrigados a realizá-las ou, pior, soldados americanos sodomizando prisioneiros iraquianos.
No Camboja e no Vietnã, vimos soldados carregando cabeças, prisioneiros assassinados a sangue-frio, os horrores do napalm naquela criança nua correndo. Mas não vimos as imagens do massacre de My Lai, em que nossos bons garotos assassinaram civis, queimaram-nos vivos, estupraram, escalpelaram, porque esses atos horríveis não foram considerados "prêmios" por seus executores nem capturados em fotos, aconteceram muito rápido, muito inesperadamente. Essa é a principal diferença -além da facilitação da tecnologia, claro, com os soldados de agora tendo acesso a máquinas digitais."

"POLÍCIA DO MUNDO" - "Sim, os norte-americanos são freqüentemente vistos como a polícia do mundo, a reserva moral do universo, por sermos um povo temente a Deus, generoso, gentil, de coração aberto. Vendemos nossa imagem ao longo dos anos como promotores da democracia, campeões da liberdade, a força policial global contra a tirania, os tiranos e os "malfeitores". O fato é que ocupamos uma posição social-moral-política única no mundo. Devido aos nossos avanços tecnológicos e ao padrão de vida elevado, e por termos nos transformados na única superpotência mundial restante -até que a China nos substitua na próxima década-, nossos líderes ditam os termos que o resto do mundo deve aceitar.
Assim, a maioria da população dos outros países não espera que os norte-americanos ajam como selvagens, e quando acontecem violações extremas dessa imagem, como no caso das prisões iraquianas, isso chama atenção automaticamente. Aqueles que estudaram a história política dos EUA com mais cuidado, no entanto, conhecem o lado negro da América, de nosso apoio a ditaduras ao redor do mundo, desde que elas prometessem ser anticomunistas, ao nosso apoio inicial ao governo de Saddam Hussein, quando nosso inimigo era o Irã, ao apoio aos talebans no Afeganistão, quando nossos inimigos eram a União Soviética..."


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