São Paulo, terça-feira, 17 de janeiro de 2006

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Presidente é uma Evita sem o populismo, afirma analista

DA ENVIADA ESPECIAL A SANTIAGO

Dado seu potencial de produzir mudanças culturais, o fenômeno Michelle Bachelet no Chile pode ser comparado, no limite, ao vivido na Argentina com Evita Perón (1919-52), a mitológica mulher do presidente Juan Domingo Perón (1895-1974). As duas figuras, porém, mantêm uma diferença importante: Bachelet é a "antítese do populismo". A avaliação é da economista chilena Marta Lagos, co-fundadora e diretora-executiva da Latinobarómetro, ONG que desde 1996 pesquisa a aceitação da democracia no continente. Leia a seguir, trechos de sua entrevista à Folha, em Santiago. (CVN)

 

Folha - Em artigo, a sra. comparou o fenômeno Bachelet ao fenômeno Evita. O que há de comum entre as duas?
Marta Lagos -
Em geral, as mulheres que assumiram o poder na América Latina não conseguiram grandes transformações culturais, exceto Evita. Essas mudanças não são uma conseqüência direta da Presidência de uma mulher. Por exemplo, a Presidência de [Violeta] Chamorro na Nicarágua não teve conseqüências maiores, nem a da panamenha [Mireya Moscoso, em 1999].
Nenhuma produziu mudanças; a única que teve um simbolismo cultural foi Evita. Você pode ver isso com mulheres ao redor do mundo: Indira Gandhi [duas vezes premiê indiana] marcou uma diferença, mas [a atual premiê alemã] Angela Merkel está jogando um papel muito tradicional.
A diferença no caso chileno é que Michelle Bachelet foi eleita para produzir uma mudança cultural. Ela ganhou a eleição com esse mandato. Posto de outra maneira, ela não teria ganho a eleição se não tivesse simbolizado essa mudança cultural.
Agora, não se pode compará-la com Evita porque Evita era um fenômeno populista, e Bachelet está no extremo do populismo, é a antítese do populismo. Evita tampouco foi eleita pelo voto popular.
Mas pode-se dizer que Bachelet tenta produzir uma mudança cultural com uma marca que poderia historicamente simbolizar uma liderança feminina distinta que fique registrada, como ficou Evita.

Folha - A vitória de Bachelet indica que sopram novos ventos na América do Sul?
Lagos -
Diria que não, francamente. Ajuda em que as mulheres se legitimem porque produz um efeito de exemplo. Mas creio que o problemas das elites latino-americanas seja muito profundo, de representação, que aponta à renovação da classe política depois de largos períodos autoritários que não se produziram na maior parte dos países. Essa renovação está acontecendo muito aos solavancos, ou seja, com pouca continuidade e legitimidade.
A América Latina tem uma urgente necessidade de bons políticos, entre os quais, sem dúvida, pode haver mulheres, mas não me parece que seja o início de uma nova onda. É mais uma exceção do que uma regra.

Folha - Como a sra. entende essa vitória no contexto regional de avanço de governos de esquerda e centro-esquerda?
Lagos -
Há um mau entendimento sobre o que significa hoje em dia a esquerda. As demandas e as ofertas de Sebastián Piñera [adversário de Bachelet na eleição, de centro-direita] eram muito parecidas às de Bachelet e não se pode dizer que eram mais de esquerda ou menos de esquerda. Existe um "mainstream" de ofertas que se referem a políticas públicas e ao desmantelamento da pobreza e da desigualdade que é a única agenda que pode ter hoje um político na América Latina.
Se você qualifica essa agenda como de esquerda, de fato está dizendo que todos os governos latino-americanos são de esquerda. Mas você não pode comparar [o presidente eleito da Bolívia] Evo Morales com Bachelet, não pode dizer que os dois são igualmente de esquerda, é preciso fazer uma diferenciação. Tampouco pode comparar [o presidente da Venezuela, Hugo] Chávez com Lula e Bachelet, são três expressões de realidades nacionais muito complexas e muito distintas.
Portanto, a etiqueta "esquerda" não é adequada para todas essas pessoas. Parece-me um pouco aventureiro tentar reduzir e simplificar isso com o objetivo de fazer uma história mais bonita.

Folha - O Chile terá uma mulher presidente, mas como é a participação feminina em outros setores?
Lagos -
Não é muito diferente do que era na primeira República, antes do governo [de Augusto] Pinochet [1973-90]. O número de mulheres que estão no Parlamento ou em cargos diretivos em empresas continua sendo muito baixo. Portanto, Bachelet é uma exceção. Isso não significa que a sociedade chilena tenha reconhecido de maneira extraordinária o valor da mulher. É uma exceção que marca uma tendência que poderia ocorrer no futuro, mas não representa uma tendência que ocorreu no passado.


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