São Paulo, quarta-feira, 17 de março de 2004

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ANÁLISE

Tudo o que a Al Qaeda queria

Christophe Simon/France Presse
Espanhola participa de manifestação em homenagem aos 201 mortos nos atentados em Madri


DAVID BROOKS
DO "NEW YORK TIMES"

Estou fazendo um esforço para não pensar mal dos espanhóis. Eles sofreram um golpe doloroso, e foi uma loucura seguir adiante com a eleição apenas três dias após o massacre de Madri.
Mesmo assim, eis o que parece ter acontecido: o governo espanhol levava adiante políticas no Afeganistão e no Iraque às quais a Al Qaeda se opunha; um grupo ligado à Al Qaeda assassinou 200 espanhóis, declarando que os ataques foram desferidos como castigo por aquelas políticas; uma porcentagem significativa do eleitorado espanhol se mobilizou após o massacre para mudar o rumo da campanha eleitoral, derrubar o governo antigo e erigir em seu lugar uma administração cuja política seja mais do agrado da Al Qaeda.
Como é mesmo que se diz "apaziguar" em espanhol?
Há milhões de americanos, dentro e fora do governo, para quem os eleitores espanhóis que mudaram seu voto estão procurando, de maneira vergonhosa, garantir uma paz em separado na guerra ao terror.
Estou resistindo a essa conclusão porque não sei qual foi o misto de questões que mudou o rumo da eleição espanhola durante aqueles últimos dias. Mas o que sei é que inverter um rumo na esteira de um ataque terrorista é imperdoável.
Não me importa qual é a política. Não se oferece a terroristas a chance de pensar que seus métodos funcionam. Não se dá a eles a oportunidade de comemorar vitórias. Quando se faz isso, se transforma o mundo em um lugar mais perigoso, tanto para outros quanto, provavelmente, para nós mesmos.
Agora podemos ter boa dose de certeza de que esse não terá sido o último dos massacres cometidos à véspera de uma eleição.


O que aconteceu na Espanha foi um divisor de águas. Vai mudar a maneira como a Al Qaeda pensa o mundo. Vai mudar a maneira como os europeus enxergam o mundo. Vai impor restrições à política americana nos anos futuros


A Al Qaeda verá o caso da Espanha como uma vitória esplendorosa. Afinal, em quantas ocasiões anteriores assassinos conseguiram mudar o rumo de uma eleição democrática? E, tendo feito isso uma vez, por que parar agora? Por que eles não devem seguir adiante e massacrar italianos, poloneses, americanos e britânicos?
A Al Qaeda já induziu um país a abandonar a população do Iraque. Anteontem, o primeiro-ministro espanhol eleito indicou que vai retirar suas tropas do Iraque a não ser que a ONU assuma o controle do país.
Os terroristas buscavam justamente isso, porque compreendiam, mesmo que muitos na Europa não o compreendam, que o Iraque é um campo de batalha crucial na guerra ao terror. Eles compreendiam a ameaça mortal a sua causa que é a nova Constituição democrática. Como escreveu Abu Musab Al Zarqawi em seu célebre memorando, onde existe democracia não existe pretexto para assassinato. Onde há liberdade, não há chances para uma teocracia totalitária.
Talvez a Al Qaeda conquiste novos recrutas em conseqüência desse triunfo. Mas, mesmo que ela destrua o Afeganistão e o Iraque, não irá parar por aí. Os países que fogem da luta, como a Espanha, não estarão em segurança. Pois a missão da Al Qaeda não se limita a um país ou outro. Ela é existencial. "Vocês amam a vida, e nós amamos a morte", disseram os supostos terroristas na fita de vídeo encontrada em Madri.
Haverá outros abalos posteriores decorrentes da eleição espanhola. A divisão entre EUA e Europa vai se ampliar. Agora todos os políticos europeus saberão que, se tomarem o partido dos EUA no tocante a ameaças de segurança controversas, e se terroristas golpearem seu país, seus eleitores poderão atribuir a culpa a eles, os políticos.
Nas próximas semanas, muitos americanos e muitos europeus vão olhar uns para os outros com incredulidade. Pois hoje, mais do que nunca, parece, de fato, que os americanos são de Marte e os europeus, de Vênus.
Se um grupo terrorista atacasse os EUA três dias antes de uma eleição, será que alguém duvida que o eleitorado americano se uniria por trás do presidente, ou, pelo menos, por trás do partido mais agressivamente contrário ao terror? Alguém ainda duvida que americanos e europeus têm culturas morais e políticas diferentes? Anteontem, o líder da Comissão Européia, Romano Prodi, disse ao jornal italiano "La Stampa": "Está claro que a força não é resposta para resolver o conflito com os terroristas". Será que ele pensa que capitulação ou negociações funcionariam melhor? Dá para se imaginar John Kerry ou George W. Bush dizendo isso?
Os próprios EUA não são isentos de culpa. Onde estava nosso Departamento de Estado? Por que Colin Powell não passou os últimos anos atravessando a Europa, para que os eleitores europeus pelo menos conhecessem os argumentos a favor da libertação do Iraque, pelo menos tivessem uma imagem precisa dos americanos, em lugar do estereótipo grosseiro de caubói propagado pela mídia européia? Por que a administração Bush torna as coisas tão difíceis para seus aliados? Por que ela é tão incapaz de aproximar-se deles?
O que aconteceu foi um divisor de águas. Vai mudar a maneira como a Al Qaeda pensa o mundo. Vai mudar a maneira como os europeus enxergam o mundo. Vai impor restrições à política americana nos anos futuros.

Tradução de Clara Allain


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