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Ditadura dos quartéis e dos negócios escusos
NEWTON CARLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
A três de fevereiro de 1989, a
mais antiga ditadura da América Latina, a do general Alfredo
Stroessner, do Paraguai, caiu
vítima do mesmo tipo de golpe
aplicado 35 anos antes contra o
presidente Federico Chávez,
um levante militar. Acabava o
regime do ditador que negociou
a criação da usina de Itaipu
com o Brasil e que participou
da Operação Condor, que perseguia opositores às ditaduras
de direita no Cone Sul.
Mas o Paraguai tinha (e de
certo modo continua tendo) características político-militares
muito próprias. Desde a retirada das tropas brasileiras e argentinas, em 1876, com a vitória da Tríplice Aliança, dois
partidos, Liberal e Colorado,
assumiram o controle da vida
do país, à sombra dos quartéis.
Filho de imigrante alemão
casado com índia, Stroessner
nasceu em 1912, entrou para o
Colégio Militar em 1929 e em
1932 teve o seu batismo de fogo.
Lutou, dizem os registros oficiais, "com coragem e bravura"
na guerra do Chaco, contra a
Bolívia, carnificina que se estendeu por três anos. O Paraguai passou à história como um
vencedor tão baleado quanto os
bolivianos vencidos e o golpismo entrou em aceleração.
Ritual do voto
Seis se revezaram em palácio
entre 1948 e 1954, período em
que Stroessner ascendeu na
hierarquia militar, se tornando
comandante das Forças Armadas e participante das intrigas
políticas até tomar a Presidência de assalto, em maio de 1954.
Passados dois meses, o partido
Colorado o escolheu como
"candidato de compromisso",
eleito por antecipação. Só deixaria o poder, mesmo assim à
força, 35 anos depois.
Nunca faltou o ritual do voto.
O estado de sítio, vigente durante toda a ditadura "de fato",
era suspenso por 24 horas em
dias de "eleições", para que o
povo "pudesse votar livremente". A Constituição foi mudada
com um único objetivo, o de
permitir que Stroessner se candidatasse indefinidamente.
A lei 209, espécie de AI-5, punia com prisão os que "promovem o ódio entre os paraguaios". Consagrado num livro
de Roa Bastos como "Yo, el Supremo", ou simplesmente um
"senhor absoluto", Stroessner
dizia: "Estou aqui não porque
eu queira, mas porque o povo
quer". Em 1983, ganhou seu sétimo mandato consecutivo,
com mais de 90% dos votos.
Não faltaram lances de presença de uma "leal" oposição, a
de liberais dispostos a dar um
selo de legitimidade participando de farsas eleitorais.
Stroessner, já comandante-em-chefe das Forças Armadas,
cargo inerente à Presidência,
não se deu por satisfeito. Tratou de reter o cargo de comandante do Exército. O controle
das Forças Armadas e de uma
Polícia Nacional chefiada por
oficiais do Exército permitiu a
Stroessner administrar os instrumentos de poder em associação com o partido Colorado.
Organizados e onipresentes,
os colorados cuidavam de manter a sociedade na linha. Nos
anos 80, os filiados (um milhão
e 400 mil) representavam 35%
da população. Emprego no setor público, só com carteirinha
do partido. O colunista americano Jack Anderson tocou no
lado de mais podridão dos porões da ditadura, dizendo que
Stroessner estava "metido até o
pescoço em ações de contrabando".
A longevidade da ditadura de
Stroessner -a partir do controle da engrenagem militar e política, por meio de Forças Armadas fiéis, um partido onipresente, repressão e corrupção-
começou a entrar em crise com
a agenda da sucessão.
Em 1985, com Stroessner aos
72 anos e mais um mandato se
encerrando em 1988, os colorados se dividiram entre militantes e tradicionalistas. Os primeiros eram constituídos por
gerações mais jovens que reivindicavam o direito de participar do butim. Lançaram um filho do ditador, Gustavo, oficial
da Força Aérea, cujo interesse
maior, até então, eram os negócios e não a política. Uma sucessão monárquica, portanto,
recusada pelos tradicionalistas,
que acabaram se articulando
com o general Andrés Rodríguez, parente de Stroessner e
por isso comandante da unidade mais poderosa, o Primeiro
Corpo de Exército.
Chegaram afinal à idade da
explosão contradições internas
num sistema de poder único no
continente. Cinco anos antes,
em 1984, procurando capitalizar a crise do autoritarismo na
América Latina, quatro grandes grupos da oposição assinaram em Paris um Acordo Nacional contra a ditadura. A renda per capita de US$ 100 dava a
medida da crise social. O Brasil
ocupava lugar de destaque nos
entrechoques no Paraguai. A
oposição exigia a renegociação
do tratado de Itaipu, projeto hidroelétrico binacional de quase
US$ 6 bilhões.
Os "estronistas" usavam o
tratado como uma das justificativas para a permanência de
Stroessner. Derrubado,
Stroessner refugiou-se primeiro na casa de visitas de Furnas,
em Itumbiara, em Goiás. Deslocou-se depois para uma casa
de praia no Paraná e, afinal, em
julho de 1989, três meses depois do golpe, instalou-se num
"bunker" em Brasília. Como
asilado político, só podia ser extraditado em caso de condenação por crime "concreto e comum" no país de origem.
Não existem dados oficiais,
mas se estima em "algumas dezenas" o número de "desaparecidos" durante a ditadura.
Em 1992, o advogado e ex-prisioneiro político Martín Almada descobriu os chamados
"Arquivos do Terror", que comprovam que Stroessner e seus
serviços de segurança foram
participantes ativos da Operação Condor, um sistema unificado de repressão envolvendo
várias ditaduras sul-americanas, incluindo a brasileira. No
dia do golpe havia mais de mil
presos políticos no "El Calabozo", como era conhecido o Departamento de Investigações.
O jornalista NEWTON CARLOS é analista de
questões internacionais
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