São Paulo, quinta-feira, 17 de agosto de 2006

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Ditadura dos quartéis e dos negócios escusos

NEWTON CARLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A três de fevereiro de 1989, a mais antiga ditadura da América Latina, a do general Alfredo Stroessner, do Paraguai, caiu vítima do mesmo tipo de golpe aplicado 35 anos antes contra o presidente Federico Chávez, um levante militar. Acabava o regime do ditador que negociou a criação da usina de Itaipu com o Brasil e que participou da Operação Condor, que perseguia opositores às ditaduras de direita no Cone Sul.
Mas o Paraguai tinha (e de certo modo continua tendo) características político-militares muito próprias. Desde a retirada das tropas brasileiras e argentinas, em 1876, com a vitória da Tríplice Aliança, dois partidos, Liberal e Colorado, assumiram o controle da vida do país, à sombra dos quartéis.
Filho de imigrante alemão casado com índia, Stroessner nasceu em 1912, entrou para o Colégio Militar em 1929 e em 1932 teve o seu batismo de fogo. Lutou, dizem os registros oficiais, "com coragem e bravura" na guerra do Chaco, contra a Bolívia, carnificina que se estendeu por três anos. O Paraguai passou à história como um vencedor tão baleado quanto os bolivianos vencidos e o golpismo entrou em aceleração.

Ritual do voto
Seis se revezaram em palácio entre 1948 e 1954, período em que Stroessner ascendeu na hierarquia militar, se tornando comandante das Forças Armadas e participante das intrigas políticas até tomar a Presidência de assalto, em maio de 1954. Passados dois meses, o partido Colorado o escolheu como "candidato de compromisso", eleito por antecipação. Só deixaria o poder, mesmo assim à força, 35 anos depois.
Nunca faltou o ritual do voto. O estado de sítio, vigente durante toda a ditadura "de fato", era suspenso por 24 horas em dias de "eleições", para que o povo "pudesse votar livremente". A Constituição foi mudada com um único objetivo, o de permitir que Stroessner se candidatasse indefinidamente.
A lei 209, espécie de AI-5, punia com prisão os que "promovem o ódio entre os paraguaios". Consagrado num livro de Roa Bastos como "Yo, el Supremo", ou simplesmente um "senhor absoluto", Stroessner dizia: "Estou aqui não porque eu queira, mas porque o povo quer". Em 1983, ganhou seu sétimo mandato consecutivo, com mais de 90% dos votos.
Não faltaram lances de presença de uma "leal" oposição, a de liberais dispostos a dar um selo de legitimidade participando de farsas eleitorais. Stroessner, já comandante-em-chefe das Forças Armadas, cargo inerente à Presidência, não se deu por satisfeito. Tratou de reter o cargo de comandante do Exército. O controle das Forças Armadas e de uma Polícia Nacional chefiada por oficiais do Exército permitiu a Stroessner administrar os instrumentos de poder em associação com o partido Colorado.
Organizados e onipresentes, os colorados cuidavam de manter a sociedade na linha. Nos anos 80, os filiados (um milhão e 400 mil) representavam 35% da população. Emprego no setor público, só com carteirinha do partido. O colunista americano Jack Anderson tocou no lado de mais podridão dos porões da ditadura, dizendo que Stroessner estava "metido até o pescoço em ações de contrabando".
A longevidade da ditadura de Stroessner -a partir do controle da engrenagem militar e política, por meio de Forças Armadas fiéis, um partido onipresente, repressão e corrupção- começou a entrar em crise com a agenda da sucessão.
Em 1985, com Stroessner aos 72 anos e mais um mandato se encerrando em 1988, os colorados se dividiram entre militantes e tradicionalistas. Os primeiros eram constituídos por gerações mais jovens que reivindicavam o direito de participar do butim. Lançaram um filho do ditador, Gustavo, oficial da Força Aérea, cujo interesse maior, até então, eram os negócios e não a política. Uma sucessão monárquica, portanto, recusada pelos tradicionalistas, que acabaram se articulando com o general Andrés Rodríguez, parente de Stroessner e por isso comandante da unidade mais poderosa, o Primeiro Corpo de Exército.
Chegaram afinal à idade da explosão contradições internas num sistema de poder único no continente. Cinco anos antes, em 1984, procurando capitalizar a crise do autoritarismo na América Latina, quatro grandes grupos da oposição assinaram em Paris um Acordo Nacional contra a ditadura. A renda per capita de US$ 100 dava a medida da crise social. O Brasil ocupava lugar de destaque nos entrechoques no Paraguai. A oposição exigia a renegociação do tratado de Itaipu, projeto hidroelétrico binacional de quase US$ 6 bilhões.
Os "estronistas" usavam o tratado como uma das justificativas para a permanência de Stroessner. Derrubado, Stroessner refugiou-se primeiro na casa de visitas de Furnas, em Itumbiara, em Goiás. Deslocou-se depois para uma casa de praia no Paraná e, afinal, em julho de 1989, três meses depois do golpe, instalou-se num "bunker" em Brasília. Como asilado político, só podia ser extraditado em caso de condenação por crime "concreto e comum" no país de origem.
Não existem dados oficiais, mas se estima em "algumas dezenas" o número de "desaparecidos" durante a ditadura.
Em 1992, o advogado e ex-prisioneiro político Martín Almada descobriu os chamados "Arquivos do Terror", que comprovam que Stroessner e seus serviços de segurança foram participantes ativos da Operação Condor, um sistema unificado de repressão envolvendo várias ditaduras sul-americanas, incluindo a brasileira. No dia do golpe havia mais de mil presos políticos no "El Calabozo", como era conhecido o Departamento de Investigações.


O jornalista NEWTON CARLOS é analista de questões internacionais

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