|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ALIANÇA DO NORTE
Grupo opositor obriga militantes do movimento detidos a demonizar o regime em entrevistas
Talebans presos viram propaganda
KENNEDY ALENCAR
ENVIADO A JABAL-SARAJ (AFEGANISTÃO)
"Eu sou um fundamentalista.
(...) Se Osama bin Laden está por
trás dos atentados contra a América, ele tem o meu apoio. Osama
deve ter tido um motivo razoável
para matar aquelas pessoas. Osama é um herói para os verdadeiros muçulmanos. (...) Devemos
matar os americanos porque eles
são inimigos do islã. Os americanos dão apoio político, financeiro
e militar para Israel roubar a terra
dos palestinos. (...) Se você for um
inimigo do islã, eu tenho a obrigação de matá-lo."
As frases acima são de Salahuddeen Khalid, um paquistanês de
27 anos que está na prisão de
Doo-Ab, no vale do Panshir, junto
com outros 379 detentos capturados pela Aliança do Norte nas batalhas contra os soldados do Taleban. Mais interessante ainda: ele
diz pertencer à Al Qaeda, a organização terrorista chefiada por
Bin Laden.
No imaginário do mundo ocidental, Khalid é a encarnação perfeita de um extremista. Além das
declarações de dar orgulho ao
mulá Omar, o líder do Taleban,
Khalid possui a aparência de um
fundamentalista. Tem a barba
longa, com os fios enrolados na
ponta. Professor de história islâmica, usa óculos pretos, com aros
grossos e grandes. Fala de um jeito calmo e seguro, que lembra as
cenas das raras entrevistas de Bin
Laden repetidas na TV.
No entanto esse personagem
ideal do ponto de vista jornalístico provavelmente é uma farsa.
"Está errado"
Terminada a entrevista, quando
a Folha fica sozinha com Khalid
por menos de dez segundos, ele
diz uma frase que lança dúvidas
sobre tudo o que falou e que mostra que ele pode ter sido usado como peça de propaganda da Aliança do Norte para demonizar o Taleban: "A entrevista está errada".
O repórter tenta conversar
mais, perguntando se ele foi forçado a mentir. Mas Khalid só tem
tempo de dar um sorriso amistoso. Um guarda aponta um fuzil
em nossa direção e manda que ele
entre na cela de 45 metros quadrados onde vivem 30 presos.
O mais provável é que tudo tenha sido mesmo armado pela
Aliança do Norte, que dá a autorização para jornalistas visitarem as
prisões e entrevistarem os presos.
Se Khalid fosse realmente da Al
Qaeda, seria o prisioneiro mais
valioso da Aliança do Norte e já
estaria numa hora dessas em
Washington ou nas bases americanas da região para ser interrogado.
Uma possibilidade bem menor
é Khalid ter realmente dito a verdade e depois ter afirmado que a
entrevista estava "errada" para se
proteger do Taleban. Na conversa, ele dá detalhes sobre seu treinamento no Afeganistão e até sobre Bin Laden, a quem chama de
Osama o tempo todo, como todos
os afegãos.
Níveis de treinamento
É o diretor da prisão, Abdul
Qauen, um homem de 46 anos
que aparenta 60, quem chama
Khalid, diante da insistência para
apresentar um dos dez prisioneiros da Al Qaeda que ele dissera ter
sob o seu domínio.
Na presença de Qauen, que confessa bater nos prisioneiros
"quando eles cometem um erro,
como um grande pai para todos",
Khalid conta que treinou em 1996
numa base da Al Qaeda em Host,
cidade a sudeste de Cabul, próxima à fronteira com o Paquistão.
Fala que há três níveis de campos
de treinamento.
No campo de nível básico, com
cerca de 400 homens, diz ter
aprendido a manusear armas de
todos os tipos e a fazer explosivos.
No de nível médio, com cerca de
cem, conta ter estudado cartografia e táticas de guerrilha. No superior, Khalid afirma que acontecem as reuniões que preparam as
missões terroristas.
Khalid diz ter passado por todos
os níveis e que viu Bin Laden visitar diversas vezes os campos de
nível médio e superior. Fala ter
ouvido o seguinte ensinamento
de Bin Laden: "Quanto mais suor
no campo de treinamento, menos
sangue perdido no campo de batalha".
Segundo ele, sua tarefa foi chefiar um grupo de 50 homens na
Caxemira, região na divisa do Paquistão e da Índia que é disputada
pelos dois países.
Do que Khalid diz, o mais crível
é como foi apanhado pela Aliança
do Norte, em 1998. Relata que estava em Bagram, onde há frentes
de combate dos rebeldes e do Taleban quando seu grupo foi cercado pelo inimigo. Ele foi o escolhido para ficar atirando sem parar,
a fim de dar tempo aos colegas para fugir. Foi preso junto com Ali
Akbar, outro paquistanês de 27
anos que o diretor da prisão apresentou como membro da Al Qaeda e que abriu a boca poucas vezes
na entrevista.
Vida na prisão
Akbar não tem barba, mas um
cavanhaque longo, com os fios da
ponta enrolados. Não usa óculos e
parece ser mais novo que o barbudo Khalid. "Nunca ninguém
nos perguntou essas coisas tão
amigavelmente", diz Akbar,
quando indagado sobre as condições de vida na prisão.
O banho é só uma vez por semana, na sexta-feira, no rio Panshir.
A prisão fica numa pequena planície no vale do Panshir, quando
o rio se divide em dois. De um lado, montanhas difíceis de escalar.
Do outro, o rio.
Os presos são vigiados por cerca
de 50 guardas armados com fuzis.
Há guaritas na montanha e perto
do rio. Em cima do telhado da cadeia, feita de tijolos e com o tradicional acabamento de barro nas
paredes, revezam-se os sentinelas.
"Nunca houve uma tentativa de
fuga nos seis anos de existência da
prisão. Não há para onde ir. De
um lado, só tem montanha depois
de montanha. Do outro está o rio.
Se alguém fugir, o povo do Panshir descobre na hora", diz, orgulhoso, o diretor da prisão. A cadeia fica distante quatro horas de
carro de Jabal-Saraj. O caminho é
por uma estrada terrível do vale
do Panshir, cheia de pedras, buracos e pó.
Em Doo-Ab, a comida é feita
pelos presos. Num acordo de cavalheiros, o Taleban manda dinheiro para os presos, cerca de
US$ 50 a cada três meses, mais ou
menos. A Aliança do Norte também envia dinheiro aos seus homens presos pelo Taleban. De vez
em quando, realiza-se troca de
detentos.
"Com o dinheiro, compramos
tomate, cebola, arroz e carne de
carneiro. Se não podemos comprar carne fresca, compramos
carne defumada. Há colegas aqui
que cozinham bem", diz Akbar.
Para duas das cinco orações diárias, de manhã e à tarde, os presos
são liberados a sair da prisão em
grupos, sempre vigiados por soldados.
Nessas ocasiões, aproveitam para ir ao "banheiro" atrás dos rochedos, ao pé da montanha, ou na
margem do rio. "Não é uma boa
vida, mas também não é uma vida
totalmente ruim", conta Akbar,
despedindo-se com um aperto de
mão.
Texto Anterior: Míssil atinge a Cruz Vemelha Próximo Texto: Chinês é preso por defender Taleban Índice
|