São Paulo, quarta-feira, 17 de outubro de 2001

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ALIANÇA DO NORTE

Grupo opositor obriga militantes do movimento detidos a demonizar o regime em entrevistas

Talebans presos viram propaganda

KENNEDY ALENCAR
ENVIADO A JABAL-SARAJ (AFEGANISTÃO)

"Eu sou um fundamentalista. (...) Se Osama bin Laden está por trás dos atentados contra a América, ele tem o meu apoio. Osama deve ter tido um motivo razoável para matar aquelas pessoas. Osama é um herói para os verdadeiros muçulmanos. (...) Devemos matar os americanos porque eles são inimigos do islã. Os americanos dão apoio político, financeiro e militar para Israel roubar a terra dos palestinos. (...) Se você for um inimigo do islã, eu tenho a obrigação de matá-lo."
As frases acima são de Salahuddeen Khalid, um paquistanês de 27 anos que está na prisão de Doo-Ab, no vale do Panshir, junto com outros 379 detentos capturados pela Aliança do Norte nas batalhas contra os soldados do Taleban. Mais interessante ainda: ele diz pertencer à Al Qaeda, a organização terrorista chefiada por Bin Laden.
No imaginário do mundo ocidental, Khalid é a encarnação perfeita de um extremista. Além das declarações de dar orgulho ao mulá Omar, o líder do Taleban, Khalid possui a aparência de um fundamentalista. Tem a barba longa, com os fios enrolados na ponta. Professor de história islâmica, usa óculos pretos, com aros grossos e grandes. Fala de um jeito calmo e seguro, que lembra as cenas das raras entrevistas de Bin Laden repetidas na TV.
No entanto esse personagem ideal do ponto de vista jornalístico provavelmente é uma farsa.

"Está errado"
Terminada a entrevista, quando a Folha fica sozinha com Khalid por menos de dez segundos, ele diz uma frase que lança dúvidas sobre tudo o que falou e que mostra que ele pode ter sido usado como peça de propaganda da Aliança do Norte para demonizar o Taleban: "A entrevista está errada".
O repórter tenta conversar mais, perguntando se ele foi forçado a mentir. Mas Khalid só tem tempo de dar um sorriso amistoso. Um guarda aponta um fuzil em nossa direção e manda que ele entre na cela de 45 metros quadrados onde vivem 30 presos.
O mais provável é que tudo tenha sido mesmo armado pela Aliança do Norte, que dá a autorização para jornalistas visitarem as prisões e entrevistarem os presos.
Se Khalid fosse realmente da Al Qaeda, seria o prisioneiro mais valioso da Aliança do Norte e já estaria numa hora dessas em Washington ou nas bases americanas da região para ser interrogado.
Uma possibilidade bem menor é Khalid ter realmente dito a verdade e depois ter afirmado que a entrevista estava "errada" para se proteger do Taleban. Na conversa, ele dá detalhes sobre seu treinamento no Afeganistão e até sobre Bin Laden, a quem chama de Osama o tempo todo, como todos os afegãos.

Níveis de treinamento
É o diretor da prisão, Abdul Qauen, um homem de 46 anos que aparenta 60, quem chama Khalid, diante da insistência para apresentar um dos dez prisioneiros da Al Qaeda que ele dissera ter sob o seu domínio.
Na presença de Qauen, que confessa bater nos prisioneiros "quando eles cometem um erro, como um grande pai para todos", Khalid conta que treinou em 1996 numa base da Al Qaeda em Host, cidade a sudeste de Cabul, próxima à fronteira com o Paquistão. Fala que há três níveis de campos de treinamento.
No campo de nível básico, com cerca de 400 homens, diz ter aprendido a manusear armas de todos os tipos e a fazer explosivos. No de nível médio, com cerca de cem, conta ter estudado cartografia e táticas de guerrilha. No superior, Khalid afirma que acontecem as reuniões que preparam as missões terroristas.
Khalid diz ter passado por todos os níveis e que viu Bin Laden visitar diversas vezes os campos de nível médio e superior. Fala ter ouvido o seguinte ensinamento de Bin Laden: "Quanto mais suor no campo de treinamento, menos sangue perdido no campo de batalha".
Segundo ele, sua tarefa foi chefiar um grupo de 50 homens na Caxemira, região na divisa do Paquistão e da Índia que é disputada pelos dois países.
Do que Khalid diz, o mais crível é como foi apanhado pela Aliança do Norte, em 1998. Relata que estava em Bagram, onde há frentes de combate dos rebeldes e do Taleban quando seu grupo foi cercado pelo inimigo. Ele foi o escolhido para ficar atirando sem parar, a fim de dar tempo aos colegas para fugir. Foi preso junto com Ali Akbar, outro paquistanês de 27 anos que o diretor da prisão apresentou como membro da Al Qaeda e que abriu a boca poucas vezes na entrevista.

Vida na prisão
Akbar não tem barba, mas um cavanhaque longo, com os fios da ponta enrolados. Não usa óculos e parece ser mais novo que o barbudo Khalid. "Nunca ninguém nos perguntou essas coisas tão amigavelmente", diz Akbar, quando indagado sobre as condições de vida na prisão.
O banho é só uma vez por semana, na sexta-feira, no rio Panshir. A prisão fica numa pequena planície no vale do Panshir, quando o rio se divide em dois. De um lado, montanhas difíceis de escalar. Do outro, o rio.
Os presos são vigiados por cerca de 50 guardas armados com fuzis. Há guaritas na montanha e perto do rio. Em cima do telhado da cadeia, feita de tijolos e com o tradicional acabamento de barro nas paredes, revezam-se os sentinelas.
"Nunca houve uma tentativa de fuga nos seis anos de existência da prisão. Não há para onde ir. De um lado, só tem montanha depois de montanha. Do outro está o rio. Se alguém fugir, o povo do Panshir descobre na hora", diz, orgulhoso, o diretor da prisão. A cadeia fica distante quatro horas de carro de Jabal-Saraj. O caminho é por uma estrada terrível do vale do Panshir, cheia de pedras, buracos e pó.
Em Doo-Ab, a comida é feita pelos presos. Num acordo de cavalheiros, o Taleban manda dinheiro para os presos, cerca de US$ 50 a cada três meses, mais ou menos. A Aliança do Norte também envia dinheiro aos seus homens presos pelo Taleban. De vez em quando, realiza-se troca de detentos.
"Com o dinheiro, compramos tomate, cebola, arroz e carne de carneiro. Se não podemos comprar carne fresca, compramos carne defumada. Há colegas aqui que cozinham bem", diz Akbar.
Para duas das cinco orações diárias, de manhã e à tarde, os presos são liberados a sair da prisão em grupos, sempre vigiados por soldados.
Nessas ocasiões, aproveitam para ir ao "banheiro" atrás dos rochedos, ao pé da montanha, ou na margem do rio. "Não é uma boa vida, mas também não é uma vida totalmente ruim", conta Akbar, despedindo-se com um aperto de mão.


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