São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2010

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Celebração de mineiros tem santos e pajés

De volta às suas casas na periferia de Copiapó, resgatados comemoram libertação com procissão sincrética

Festa na noite de sexta ocorreu longe do olhar das autoridades; aqui pagamos promessas bailando, diz moradora

Martin Mejia/Associated Press
O mineiro Carlos Mamani, o único boliviano do grupo, volta para casa em Copiapó; apenas um deles ainda está internado

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A COPIAPÓ (CHILE)

Dentro do refeitório dos familiares de mineiros, durante todo o tempo que existiu o acampamento Esperança, montado na frente da mina San José, a imagem de mais de metro de uma Nossa Senhora do Carmo vestida com túnica marrom esteve lá.
Na sexta-feira à noite, centenas de moradores das localidades de Til-Til e Manuel Rodriguez, na periferia de Copiapó, fizeram questão de se unir aos mineiros Carlos Bugueño, Pablo Rojas, Ariel Ticona e Pedro Cortez, que tinham acabado de receber alta do Hospital Regional.
Mais de 70 dias depois do dia em que saíram de suas casas para trabalhar na mina San José, era a primeira vez que os quatro homens voltavam. Haviam enfrentado a fome e o desespero depois que a mina desabou, em 5 de agosto, aprisionando-os sob toneladas de terra, rochas e cobre.
Mas, nem bem chegaram, os quatro mineiros saíram pelos bairros, em procissão de louvor à Virgem, que devolveram a seu altar, no alto de um morro.
Nas ruas mal iluminadas, de casinhas frágeis e muitos barracos de madeira, sob o teto de estrelas do deserto, desfilou o cortejo do Chile profundo. Indígena e espanhol.
Na frente, ia a camionete com a Virgem, abraçada pelos mineiros Carlos Bugueño e Pedro Cortez. Logo atrás, a pé, seguia a imagem de São Lourenço, o padroeiro dos mineiros.
Então, desdobrava-se a banda do Índio Padre Negro, associação religiosa de Copiapó. Cornetas, tubas, caixas, pratos e bumbos enormes tocavam furiosamente um carnaval indígena, seguidos de perto por mulheres e meninas vestidas como índias, agitando chocalhos.
Como efeito especial comemorativo pela libertação dos mineiros, os cocares foram decorados com circuitos de luzinhas azuis chinesas.
E, no meio da música, imperava a coreografia alucinada de um pajé com máscara horripilante.
O povo vinha atrás, a maioria com os filhos pequenos fantasiados de indiozinhos, dados em promessa à Virgem em pagamento por bênçãos recebidas.
Lorena Ávila, 20, dançava com a menina Fiorela, 1 ano, roupinha de inca com lantejoulas, penacho na cabeça. "Aqui, se pagam promessas bailando", explicou.
A decoração da festa limitava-se a bandeiras do Chile, poucas faixas com dizeres como "Orgulho dos nossos mineiros", e varais atravessados, em que se amarraram sacos de supermercado (o vento do deserto, enchendo-os, criava a impressão de que fossem balões).
Era uma festa deles. Nenhum político presente. Nenhuma câmera de televisão. Nem o padre compareceu.
Mesmo assim, os mineiros foram protegidos o tempo todo da imprensa. Delicadamente, os vizinhos pediam para que não se disparassem flashs (seus olhos ainda estariam muito sensíveis à luz), para que não fossem perturbados com entrevistas. "Agora, não, por favor."

PROCISSÃO
A procissão passou pela casa do mineiro Mario Gómez, 63, o mais velho dos 33. Ainda se recuperando de uma pneumonia, ele ficou dentro da casa sem reboco de 60 m2 que divide com a mulher Lilian Ramirez.
Da porta de casa, Lilian sorria: desfizera-se da máscara trágica que as televisões chilenas e estrangeiras não cansaram de mostrar.
Quando a procissão alcançou o morro Capi, sobre o qual o próprio Mario Gómez construiu há anos o altar da Virgem, viu-se que a escalada pelas rochas e areia tinha de vencer ainda outro obstáculo: o sopé da elevação foi ocupado por uma favelinha.
A Virgem entrou na casa do também mineiro Oswaldo Ignacio Castillo, saiu pelo quintal, e só então subiu pelo caminho escorregadio, levada pelo quatro mineiros.
Lá embaixo, os vizinhos rezaram o Pai Nosso e a Ave Maria. Os quatro, finalmente, estavam entre os seus.


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