São Paulo, domingo, 18 de março de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DIREITOS HUMANOS
Militantes pró-democracia e membros da seita Fa Lun Gong são tratados com choques elétricos e confinamento
China interna dissidentes como loucos

MARCELO STAROBINAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM LONDRES

A China tem utilizado uma rede de hospitais psiquiátricos para infratores como centro de detenção e tortura de dissidentes do regime do Partido Comunista.
Militantes pró-democracia e adeptos do movimento religioso Fa Lun Gong são rotulados pelas autoridades como mentalmente instáveis, diagnosticados como "psicóticos paranóicos" e "tratados" com choques elétricos, altas doses de medicamentos e confinamento por períodos indeterminados em celas escuras.
As informações fazem parte de um estudo do pesquisador britânico Robin Munro, da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, publicado na última edição do "Columbia Journal of Asian Law".
As descobertas são resultado de depoimentos de vítimas de tortura e seus familiares e de extensa pesquisa da literatura oficial chinesa sobre o uso dos manicômios judiciários. A chancelaria chinesa nega as acusações (leia texto nesta página).
Segundo Munro, o uso político da psiquiatria na China possui os mesmos aspectos das práticas registradas na União Soviética nos anos 70 e 80.
Atingem, porém, números bem maiores de vítimas. Nos seus cálculos, pelo menos 3.000 prisioneiros de consciência foram considerados "loucos" e internados junto com condenados de alta periculosidade nos últimos 20 anos.
"As pessoas basicamente desaparecem dentro desse sistema psiquiátrico e podem ficar lá dentro pelo resto da vida. Como são acusados de serem loucos, só podem sair quando as autoridades disserem que estão curados", disse Munro à Folha, em seu escritório em Londres.

Rede de hospitais
De acordo com o estudo, intitulado "Psiquiatria judicial na China e seus abusos políticos", a partir de 1987 o governo chinês colocou em operação uma rede de 20 hospitais psiquiátricos sob o comando do Ministério da Segurança Pública. Esses hospitais são conhecidos como Ankang (Paz e Felicidade, em chinês).
Poucos chineses têm conhecimento da existência dos Ankang, mas o governo, apesar de não fazer alarde, tampouco tenta esconder que utiliza os hospitais como ferramenta na repressão.
Na visão da polícia política e dos psiquiatras a serviço do Partido Comunista, uma pessoa precisa ser mentalmente desequilibrada para ir a público atacar o governo.
"As autoridades dizem que esses dissidentes não têm instinto de autopreservação e consideram seus protestos como um sinal de patologia mental", afirma Robin Munro.
Um dos exemplos citados pelo britânico é o caso de Wang Wanxing. Preso em 1992 ao carregar uma faixa em defesa da democracia e dos direitos humanos na praça Tiananmen -local no centro de Pequim onde estudantes foram massacrados em 1989-, ele foi classificado como "psicótico paranóico" e internado num Ankang.
Sua mulher foi pressionada pela polícia a assinar um documento atestando que Wang tinha problemas mentais, mas se negou a fazê-lo. Após sete anos de detenção, o dissidente pôde sair por três meses em liberdade condicional. Ao final desse período, convocou uma entrevista coletiva para falar sobre sua experiência no hospital psiquiátrico. Antes que conseguisse falar, foi levado de volta preso por agentes do serviço de segurança.

Fa Lun Gong
Após um período em que o número de dissidentes levados para "tratamento" vinha caindo, os manicômios judiciários chineses estão novamente cheios. Segundo Munro, o método tem sido amplamente utilizado pela China em sua ofensiva contra a Fa Lun Gong (movimento religioso que mistura exercícios físicos com meditação, que vem atraindo milhões de chineses).
Segundo o movimento, pelos menos cem de seus seguidores já foram enviados aos hospitais, mas Munro acredita que esse tipo de repressão já atinja centenas deles. "As pessoas da Fa Lun Gong contam que são amarradas com cordas, mantidas em quartos escuros por longos períodos, não recebem comida e água suficiente e são forçadas a tomar grandes quantidades de remédios desconhecidos, que provocam graves danos mentais colaterais."
Pequim vê a Fa Lun Gong como uma perigosa ameaça ao rígido controle social do Partido Comunista sobre a maior população do mundo (1,2 bilhão de habitantes). Na tentativa de conter o rápido crescimento do grupo, a propaganda oficial argumenta que a prática do kicong (arte marcial utilizada nos rituais) provoca problemas mentais.
Grupos de defesa dos direitos humanos vêm criticando o uso político da psiquiatria na China. O Programa Genebra de Psiquiatria, entidade que reúne médicos dos EUA e da Europa, vem pressionando associações nacionais de psiquiatria de todo o mundo para que condenem essa prática. Tenta também conseguir a suspensão da China do próximo encontro da Associação Mundial de Psicologia.



Texto Anterior: Terrorismo: Putin pede extradição de sequestradores
Próximo Texto: Outro lado: China nega uso de hospitais como punição
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.