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COMENTÁRIO
Batalha farsesca esconde tensão que se acumula há anos
JOHN CARLIN
DO "THE INDEPENDENT"
Em nenhum outro lugar no mundo duas civilizações milenares e que ainda competem entre si estão geograficamente tão próximas. Os 11 km de largura do estreito de Gibraltar são tudo o que separa a Espanha -profana, rica,
democrática e em cujas praias milhões expõem seus corpos atualmente- do medieval e monárquico Marrocos, onde, no último fim de semana, o rei Mohammed
6º casou-se com uma pessoa cujo corpo e rosto estavam totalmente
ocultos por uma burga.
Na semana passada, Marrocos
acertou um golpe contra os infiéis. Doze soldados marroquinos
invadiram e tomaram a ilha de
Perejil, um pequeno afloramento
rochoso a 200 m do continente
africano e habitado apenas por
cabras desde 1963. Perejil -nome que, em espanhol, significa
"salsinha"- pertencera à coroa
espanhola por mais de três séculos. Durante seis dias, a bandeira
de Marrocos flutuou sobre a ilha.
Daquele momento em diante e
por toda a eternidade, pensou
Mohammed, a ilha passaria a ser
conhecida como Leila.
Mas o rei, seus ministros e os 12
homens ousados responsáveis
pela famosa vitória não imaginavam que a coroa espanhola fosse
reagir com tamanha rapidez. O
premiê José María Aznar despachou tropas de elite para a ilha.
Os marroquinos entregaram
Leila sem disparar um único tiro.
Entretanto a aparência de farsa
divertida mascara algumas questões pertinentes: as tensões cada
vez maiores entre o islã e o Ocidente e as migrações em massa de
países pobres para países ricos.
A "Batalha da Ilha da Salsinha"
trouxe para mais perto da superfície o sentimento negativo contra
o mundo muçulmano que vem
cozinhando em banho-maria.
No que diz respeito a assuntos
raciais, a Espanha tem sido possivelmente o país mais politicamente correto da Europa nos últimos 20 anos. Num contraste com
França, Holanda, Áustria e até
Reino Unido, nada nela sugere
que um partido da direita xenófoba posaa ter ressonância.
Mas algo está se mexendo no
país da Europa Ocidental que
sempre teve os laços históricos
mais estreitos com o islã, o país
cristão que sofreu a mais longa
ocupação árabe. Os mouros dominaram a maior parte da atual
Espanha por quase 700 anos.
Alhambra, em Granada, e a não
menos gloriosa mesquita de Córdoba são testemunhos da glória e
do poder do antigo império mouro. Hoje, porém, não é gratidão o
que muitos espanhóis sentem.
Cada vez mais sentem desconfiança, ressentimento e querem se
ver livres dos mouros modernos.
Até 12 anos atrás, a Espanha era
exportadora de pessoas. Isso mudou. Próspera e estável, ela se viu
transformada repentinamente do
grande país europeu mais homogêneo em termos raciais e religiosos, num caldeirão cultural e étnico multicolorido. As pessoas não
param de chegar ao país, a maioria sem documentos legais, vindas
do Leste Europeu, da América Latina e da África Ocidental. E repetidas pesquisas de opinião dos últimos cinco anos mostram que os
imigrantes que os espanhóis mais
rejeitam são seus vizinhos do norte da África, principalmente os
marroquinos.
A que se deve esse sentimento
contrário aos mouros? Suas origens são, em parte, históricas. Enquanto a geração espanhola mais
jovem aprendeu na escola a valorizar a contribuição de seus antepassados islâmicos, todas as gerações anteriores, desde 1492, quando Fernando e Isabel expulsaram
os mouros da Espanha, foram
doutrinadas na visão católica dos
mouros, que os retrata como malévolos, traiçoeiros e hereges.
Aznar não hesitou em definir
exatamente onde a Espanha se situa no choque mais amplo desde
a destruição das Torres Gêmeas.
Com a possível exceção de Tony
Blair, nenhum outro líder ocidental reagiu de maneira mais inequívoca ao desafio lançado por George W. Bush quando ele disse aos
países do mundo: "Ou vocês estão
do nosso lado, ou estão contra
nós". Os EUA podem ter aliados
mais poderosos em sua "guerra
ao terrorismo", mas nenhum é
mais entusiástico do que Aznar.
As relações entre a Espanha e
seus vizinhos islâmicos vêm se
deteriorando constantemente,
com disputas em torno de direitos
de pesca, da soberania sobre o
Saara Ocidental etc.
A vida não anda fácil para os
marroquinos na Espanha. Desde
a invasão marroquina de Perejil,
eles começam a se sentir como se
fossem inimigos.
Tradução de Clara Allain
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