São Paulo, sábado, 18 de setembro de 2004

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EXPERIÊNCIAS SENSORIAIS

No "Dans le Noir", onde garçons são cegos, até relógios são vedados para garantir a escuridão na refeição

Restaurante francês serve comida no escuro

FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM PARIS

"Até agora ainda não sei o que comi. Mas acho que estou com uma beringela na boca. Como você está se virando?", pergunta Marc, 40. "Também não tenho a mínima idéia do que há no meu prato. E ainda não consegui reconhecer do que é feito o molho", acrescenta seu companheiro de mesa, Jean-Christophe, 37.
Diálogos semelhantes a esse se repetem todas as noites no restaurante francês "Dans le Noir", localizado no número 51 da rua Quincampoix, próximo ao Centro Georges Pompidou, em Paris. As refeições servidas no local, no entanto, correspondem à normalidade de qualquer restaurante. A diferença está no ambiente.
No "Dans le Noir", como diz em francês o nome da casa ("no escuro"), os clientes comem numa sala imersa na total obscuridade. Nenhuma fonte de luz é permitida no local. Mesmo os relógios de pulso fluorescentes são retirados dos clientes, para assegurar a completa escuridão no momento da refeição.
A iniciativa de criar o inusitado restaurante é um projeto comum da empresa Ethik Investment e da associação Paul Guinot, dedicada à defesa dos deficientes visuais e que, esporadicamente, promove jantares no escuro para divulgar sua causa. O "Dans le Noir" é o primeiro do gênero na França e o terceiro na Europa -existem dois outros estabelecimentos similares, em Zurique, na Suíça, e em Berlim, na Alemanha.

Empregos
Um dos objetivos do empreendimento é o de alertar para a necessidade de se criar alternativas de empregos para os cegos, estimados em número de 77 mil na França (20 mil crianças e adolescentes e 57 mil adultos), de acordo com dados do Ministério da Saúde. Todos os sete garçons e garçonetes da casa são cegos. E também 10% do lucro obtido é destinado à associação Paul Guinot.
Contrariamente ao que ocorre no dia-a-dia, no "Dans le Noir" as pessoas dotadas de visão normal são guiadas pelos deficientes visuais. Para entrar no restaurante, o cliente pousa sua mão no ombro da garçonete. E assim em seqüência, formando-se uma fila indiana composta pelos integrantes da mesa reservada.
Primeiro, o grupo passa por duas antecâmaras de adaptação, de luminosidade decrescente, até adentrar na escuridão total da sala principal. Uma vez instalado, basta aguardar o pedido, escolhido antes no bar iluminado.

Cardápio
Pode-se optar entre o serviço à la carte ou o "menu surpresa". No segundo caso, a surpresa será total, pois só se poderá ter uma idéia, talvez, do que se está comendo no momento de cada garfada. Para facilitar a logística, um sistema de comunicação interno, com aparelhos de escuta instalados nas orelhas, mantém em contato permanente a cozinha, os garçons e a recepção.
Inaugurado em julho último, o "Dans le Noir" foi obrigado a se adaptar à legislação específica para receber o alvará de funcionamento. "Como não temos placas luminosas de saída de emergência dispostas na sala, tivemos de montar um central elétrica autônoma no restaurante", contou à Folha Edouard de Broglie, 41, um dos sócios da Ethik.
Os copos utilizados também são especiais, de vidro inquebrável. Para alcançar os toaletes, os clientes devem solicitar a ajuda das garçonetes, do contrário jamais chegarão ao destino. Mas, em seu interior, os banheiros, evidentemente, são iluminados.

Experiência pessoal
Além da sensibilização aos problemas cotidianos enfrentados pelos cegos, a idéia é também proporcionar aos clientes uma experiência pessoal surpreendente.
"Ao comermos no escuro, nos damos conta de como o sentido da visão é dominante em nossa sociedade. Aqui, as pessoas se vêem obrigadas a ativar ao extremo sentidos como o paladar, o olfato, o tato e a audição", afirmou Edouard de Broglie.
Uma das primeiras recomendações aos clientes, aliás, é a de conter a elevação do tom de voz uma vez dentro da sala. "No escuro, as pessoas tendem a falar mais alto, por isso o teto da sala é constituído de material especial para absorver o som", explicou Alain Mazoyer, 25, que é o gerente do restaurante.
Stéphanie, 36, concorda: "Uma pena o ruído. Preferia ouvir barulho de água, da natureza. Mas comi com as mãos, e achei formidável". Seu marido, Philippe, 39, sem se dar conta, deixou a sala com o guardanapo pendurado no pescoço. "Adorei a experiência e pretendo repeti-la. Mas só usei os dedos no final, para ter certeza de que não havia deixado nada no prato", acrescentou.
Marc deu uma dica de astúcia: "Na hora de servir o vinho, coloque o dedo na borda do copo, para que não transborde".
Poucos são os clientes que não apreciam a curiosa experiência. "Menos de 1% da nossa clientela não suporta a escuridão total e pede para sair", afirmou Edouard de Broglie. Como alternativa, há um lounge, no qual os interessados podem degustar o menu da casa com todas as luzes acesas.
A garçonete Susana, 32, que se tornou deficiente visual aos 15 anos, jamais se imaginaria, na sua condição, servindo mesas num restaurante. "É como se me dissessem que um dia iria pilotar um avião", comparou, rindo. Mas depois de alguns dias de treinamento para se orientar no espaço da sala, as dificuldades foram mínimas. "É como servir um grupo de amigos em casa, só que aqui tem muito mais gente", disse.

Intimidade
Uma das particularidades do "Dans le Noir" é a relação dos freqüentadores com os empregados do local. "Os clientes beijam e abraçam as garçonetes na hora da saída, o que não se vê em outros restaurantes", conta o gerente Alain Mazoyer.
A garçonete Susana confirma: "Aqui, eles [os freqüentadores] são muito pouco tímidos. O contato conosco é diferente. A intimidade é maior, e isso é bastante compensador para nós".
Apesar do acelerado ritmo de trabalho, provocado pelo sucesso de público da casa, a garçonete não perde o bom humor. Ao esbarrar em outra colega cega, à entrada da sala, disse, provocando risos: "Desculpe, eu não te vi".


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