São Paulo, sábado, 18 de setembro de 2004

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TABAGISMO

Argumento é a base de acusação do governo americano em julgamento bilionário que começará na próxima semana

Para EUA, setor do cigarro age como máfia

NEIL BUCKLEY
DO "FINANCIAL TIMES"

Em 15 de dezembro de 1953, os presidentes de várias das maiores empresas de cigarro dos EUA se reuniram no hotel Plaza, em Nova York, num encontro incomum. A questão em pauta eram as crescentes preocupações médicas com os riscos do cigarro à saúde. Cinco estudos já haviam sugerido a existência de vínculos entre o cigarro e o câncer -e a imprensa estava tomando nota do assunto.
Numa das salas de reuniões do hotel, os presidentes da American Tobacco, da Benson & Hedges, da Philip Morris e da US Tobacco deram o primeiro passo para criar o que viria a tornar-se uma estratégia unificada para passar ao público a mensagem tranqüilizadora de que não havia evidências de que o cigarro fizesse mal à saúde.
Ao longo dos 50 anos seguintes, as empresas de cigarro americanas iriam conspirar para fraudar os consumidores, negando os perigos do fumo e da fumaça inalada por não fumantes. Iriam financiar cientistas solidários com elas para que conduzissem pesquisas que semeassem a confusão em torno da questão. Iriam manipular os níveis de nicotina para criar dependência entre os fumantes e iriam propositalmente difundir o cigarro entre os jovens. Porém, em boa parte desse tempo, elas sabiam que existia um vínculo causal entre o cigarro e a doença.
Isso tudo, ao menos, é o que o Departamento de Justiça americano tentará provar numa ação que começará a ser julgada no próximo dia 21. Os depoimentos das primeiras testemunhas do governo deverão ser divulgados nesta segunda-feira. A ação talvez se torne o maior ataque na Justiça já lançado por um governo contra uma indústria legal. O argumento essencial é similar ao das ações movidas por Estados americanos e das movidas por fumantes. Mas o julgamento em questão será diferente de tudo já visto nas cortes do Mississippi ou do Alabama.
De um lado, está o Departamento de Justiça, que, usando documentos incriminadores vazados desde o interior das empresas ou descobertos em processos anteriores ou ainda por meio de suas próprias investigações, passou cinco anos montando os mais abrangentes argumentos já preparados no combate à indústria do tabaco. De outro lado, estão os recursos somados das maiores empresas do ramo e suas fileiras de advogados de primeira linha.
O governo dos EUA afirma que os réus devem restituir US$ 280 bilhões em "lucros indevidos" -um valor mais do que suficiente para levar as empresas à falência. Para conseguir isso, porém, terá de provar -não a um júri, mas a uma juíza única- que as empresas de cigarros foram culpadas de fraude no passado e que existe a probabilidade de que continuem a fazê-lo no futuro. Não será um empreendimento fácil. O governo também terá de justificar sua exigência de US$ 280 bilhões.
A razão é que não se trata de um processo de indenização por falha de um produto, alegando que os artigos feitos pela indústria prejudicaram um fumante ou grupo de fumantes específicos, como os que o setor dos cigarros já está acostumado a combater. Em lugar disso, a ação é movida sob a Lei de Organizações Corruptas e Influenciadas por Fraudadores (Rico), de 1970, promulgada para combater o crime organizado.

Máfia
"O argumento principal do governo é que a indústria americana do cigarro foi um empreendimento ilegal, como a máfia", diz Martin Feldman, analista da Merrill Lynch para o setor do tabaco.
A indústria nega ter cometido fraudes no passado e afirma achar que o governo não conseguirá convencer a juíza Gladys Kessler, que presidirá o processo, de que há a probabilidade de que as empresas violem a Rico no futuro.
Ademais, diz o setor, as restrições à propaganda de cigarros que o governo está pedindo, ao lado da restituição de US$ 280 bilhões, em grande medida duplicam as que já estão em vigor com o acordo de 1998 conhecido como Master Settlement Agreement. Foi o acordo pelo qual as empresas de cigarros concordaram em pagar US$ 246 bilhões a 50 Estados americanos ao longo de 25 anos. Isso pôs fim aos processos litigiosos movidos pelos Estados e inspirou o governo federal a iniciar sua própria investida legal.
"Quando a ação do governo foi aberta, em 1999, dissemos achar que ela estava equivocada com base na lei, nos fatos e na política. Nada mudou desde então", diz William Ohlemeyer, um dos advogados da Philip Morris, a maior fabricante de cigarros dos EUA.
A Philip Morris é uma das seis rés. As outras são a RJ Reynolds, segunda maior empresa de tabaco nos EUA; a Brown & Williams, terceira maior; a Lorillard; a Liggett; e a filial local da British American Tobacco. Também são rés no processo duas associações do setor que já deixaram de existir.

Acusações
As alegações contidas nas últimas constatações de fatos, divulgadas em julho, são extremamente graves: "As empresas de cigarros vêm praticando e executando há 50 anos -e continuam a praticar e executar- um esquema maciço de fraude do público".
Trabalhando com as duas organizações do setor, o Instituto do Tabaco e o Conselho de Pesquisas do Tabaco, elas teriam feito uma campanha de relações públicas para desmentir os males causados pelo cigarro e gerar controvérsias em torno das pesquisas científicas. A campanha teria começado pouco após a reunião no hotel Plaza, com a Declaração Franca aos Fumantes, um anúncio assinado de página inteira publicado pelas empresas em 448 jornais dos EUA. "Acreditamos que os produtos que fabricamos não são nocivos à saúde", afirmou a declaração, que, porém, prometia que seriam conduzidas pesquisas para descobrir a verdade.

Defesa
A indústria do cigarro rejeita todas as acusações, dizendo que não houve fraude. Um dos argumentos centrais da defesa será que, desde 1966, dois anos após um relatório do diretor nacional de saúde dos EUA ter afirmado inequivocamente que o cigarro causa câncer, os maços de cigarros trazem um aviso de saúde, obrigatório por medida federal, informando que o produto pode fazer mal à saúde. Então, como as empresas poderiam ter enganado alguém?
"Quando foi constatado o vínculo entre cigarros e câncer, o Congresso precisou decidir se proibia os cigarros ou se fornecia avisos e informações para que as pessoas pudessem tomar uma decisão com base em informações corretas", afirma o advogado William Ohlemeyer. "A decisão tomada foi não proibir o cigarro, mas fornecer avisos", completou.
Para as empresas, não houve conspiração. A reunião no hotel Plaza que teria dado origem ao plano todo nem sequer foi secreta: o Departamento de Justiça foi avisado com antecedência, para que as empresas pudessem evitar o perigo de violar um decreto antitruste que proibia reuniões entre as empresas, e a reunião foi noticiada em diversos jornais. A subseqüente Declaração Franca aos Fumantes teria refletido o consenso científico vigente na época.
A composição do setor do cigarro também mudou radicalmente nos últimos 50 anos, algo que, segundo as empresas, reflete a existência de uma concorrência dinâmica que não condiz com a idéia de conspiração. A indústria de cigarros poderá ainda partir para a ofensiva, destacando os vínculos de longa data entre o Estado americano e as empresas -sem falar nos bilhões de dólares que os governos ganham em impostos sobre produtos à base de tabaco.
Os fabricantes de cigarro estão confiantes nas chances de vitória de sua defesa, que já foi burilada em dezenas de outras ações.

Diferença
Dick Daynard, adversário de longa data do setor e presidente do Projeto de Responsabilidade dos Produtos à Base de Tabaco da Universidade Northeastern, que incentiva a abertura de processos contra empresas de cigarro, argumenta, porém, que os júris decidiram em alguns casos que as indústrias do setor haviam cometido atos ilegais, mas que não podiam ser responsabilizadas pela decisão de fumar tomada por um indivíduo. Só que desta vez, afirma, não será preciso encontrar nenhum vínculo desse tipo, já que o argumento legal só diz respeito à conduta das empresas. E ainda os documentos mais condenatórios serão apresentados a corte.
O governo terá também de convencer a juíza de que as empresas continuarão a cometer fraudes. A indústria do cigarro argumenta que as restrições implantadas pelo acordo de 1998 já praticamente impossibilitam qualquer violação futura. Daynard discorda disso.
O maior desafio do governo, no entanto, talvez seja convencer o tribunal de que apenas o pagamento da restituição no valor de US$ 280 bilhões impedirá o setor de voltar a cometer violações.


Tradução de Clara Allain

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