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CABUL 1981
Capital era quase moderna
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
Não é verdade que, com a retirada do Taleban, Cabul se transforme numa cidade arejada em seus
costumes e adote um modo de vida ocidentalizado.
O antropólogo suíço Pierre
Centlivres, 68, professor emérito
da Universidade de Neuchâtel e
ex-conselheiro científico do Museu de Cabul, afirma que no passado ocorreram lampejos de modernização, com o consumo de
bebidas alcóolicas nos anos 80 ou
minissaias entre as universitárias
na década anterior.
Mas a cultura tradicional é forte
naquele país. O noivo ainda precisa "comprar" a noiva, pagando à
família dela um valor equivalente
ao de algumas vacas. Centlivres
viveu em Cabul durante dois
anos, nos anos 60, voltando ao
país diversas vezes. Eis os principais trechos de sua entrevista.
Folha - As regiões urbanas do Afeganistão estavam culturalmente
modernizadas quando em 1996 o
Taleban tomou o poder?
Pierre Centlivres - Não se pode
falar de regiões urbanas de um
modo geral. Havia, isto sim, a cidade de Cabul, onde a partir dos
anos 60 a classe média frequentava restaurantes, e mulheres circulavam com a cabeça descoberta.
Folha - A existência de uma universidade com mentalidade metropolitana pesava nesse processo?
Centlivres - Sem dúvida alguma.
As faculdades funcionavam com
a patronagem de países ocidentais. O curso de medicina era em
parte mantido pela França, o de
economia, pela Alemanha, a escola de engenharia, pelos Estados
Unidos, e o instituto politécnico,
pelos russos. Uma parte dos professores dessas instituições vinham do Ocidente ou da URSS.
Folha - Os jovens frequentavam
piscinas?
Centlivres - Havia em Cabul apenas duas ou três piscinas, em hotéis ou em clubes frequentados
por estrangeiros, como o clube
alemão. Mas elas eram frequentadas apenas por homens.
Folha - E nas ruas, como as pessoas andavam vestidas?
Centlivres - Nos anos 70, a maior
parte das pessoas se vestia com
roupas ocidentais em Cabul.
Folha - Havia algo como o que
ocorreu no Japão há um século,
quando só os camponeses se vestiam com roupas tradicionais?
Centlivres - Entre 1919 e 1929 um
rei afegão partidário de reformas,
Amanullah Khan, procurou impor à força a adoção de roupas
ocidentais. Mas ele fracassou e foi
obrigado a abdicar por pressão
dos mais conservadores. Bem
mais tarde, nos anos 60 ou 70, até
pessoas da classe média baixa
usavam roupas ocidentais. Uma
curiosidade: eram roupas usadas,
doadas na Europa a entidades filantrópicas e que misteriosamente eram revendidas em bazares.
Os afegãos muito ricos frequentavam alfaiates e costureiros para a
confecção de suas roupas. Em Cabul quase não mais se viam roupas tradicionais, ainda bastante
usadas nas áreas rurais do país.
Folha - As mulheres andavam
com a cabeça descoberta?
Centlivres - As mais ricas, às vezes com um vestido de manga
comprida e a barra bem abaixo do
joelho, cobriam geralmente a cabeça com um véu.
Folha - Podia-se falar, há 20 anos,
de uma classe média afegã, já que
ela era estatisticamente minúscula, em meio à massa de pobres?
Centlivres - É difícil falar de classe média em termos nacionais.
Mas havia sobretudo em Cabul
uma parcela da população com
essa característica. Eram os funcionários públicos graduados, os
grandes comerciantes, os médicos e as pessoas com maior escolaridade. Eram pessoas ao mesmo
tempo nacionalistas e partidárias
da modernização.
Folha - Elas consumiam bebida
alcóolica, como ocorria com a classe média iraniana de antes da revolução dos aiatolás, em 1979?
Centlivres - Nos anos 70, e por
um curto período, restaurantes
em Cabul reservados aos estrangeiros vendiam vinho e cerveja.
Em princípio os afegãos não podiam frequentar esses lugares. Podia-se também, correndo todos
os riscos imagináveis, comprar
bebidas de origem duvidosa no
mercado público. Sob o regime
pró-soviético, entre 1979 e 1992, o
consumo do álcool se expandiu.
Encontrava-se com facilidade
cerveja e vodca.
Folha - Durante o governo pró-soviético de Brabak Karmal até que
ponto chegou a "modernização
forçada"?
Centlivres -O que os comunistas
fizeram foi introduzir a alfabetização dos adultos dos dois sexos. Isso chocou os meios religiosos, que
acreditavam que as moças já crescidas seriam induzidas à emancipação e à sem-vergonhice. Desconheço qualquer educação sexual.
Folha - Mas uma camponesa alfabetizada passava a ter acesso às revistas femininas feitas no Líbano
ou no Egito, onde os costumes são
bem mais liberados?
Centlivres - Não se chegou a tal
ponto. A mulher afegã não exporia seu corpo como as libanesas.
Ela nunca mostrou o braço ou os
ombros. No início dos anos 70, na
Universidade de Cabul, algumas
estudantes chegaram a usar minissaia. Mas elas corriam riscos.
Algumas delas receberam nas
pernas tiros de fuzil. Era uma reação dos meios conservadores a
uma modernização que eles acreditavam se confundir com a degradação dos costumes.
Folha - Qual o papel dos comunistas na emancipação feminina?
Centlivres - Foi muito importante. A mulher ganhou direitos que
não tinha no mercado de trabalho. E foi estimulada a pertencer a
associações que modernizavam
os costumes, como as associações
de mães. Os comunistas inovaram em outras coisas. Nas grandes cidades construíram, por
exemplo, palácios de casamentos,
para festas muito pudicas que comemoravam os matrimônios,
mas tirava dele a dimensão de festa religiosa ou de "comercialização" da noiva entre as famílias.
Folha - Até que ponto todas essas
inovações não associariam hoje, injustamente, os comunistas ao progresso dos costumes?
Centlivres - Os afegãos não pensam assim. A frequência a restaurantes e mulheres andando de cabeça descoberta nas calçadas são
coisas que se tornaram aceitas nos
últimos anos da monarquia (o rei
foi deposto em 1973). Mesmo o
Taleban acredita que a ocidentalização corrompeu Cabul bem
mais que os comunistas. Quis então punir e purificar uma cidade
que acreditava ser libertina.
Folha - Nós temos falado sobretudo de Cabul. O que acontecia em
Candahar, Herat e Mazar-e-Sharif?
Centlivres - Cabul foi uma cidade bem mais modernizada. Candahar, ao contrário, estava mais
ligada à tradição islâmica conservadora. Foi de Candahar que vieram os maiores protestos contra a
emancipação feminina.
Folha - Essa emancipação foi desencadeada por algum episódio?
Centlivres - Com certeza isso
ocorreu em 1959, quando o primeiro-ministro Mohamad Daud
determinou que as mulheres de
seus ministros comparecessem à
festa nacional com as cabeças descobertas. Foi um grande acontecimento que gerou também grandes protestos.
Folha - Por que Candahar é tão
mais conservadora?
Centlivres - O conservadorismo
não é um fato apenas religioso no
Afeganistão. É também um fato
tribal. Os pashtus (predominantes no sul) têm uma noção de
honra e de hegemonia da masculinidade que o Taleban herdou.
Folha - A classe média escolarizada não se sentiu infeliz com a repressão do Taleban?
Centlivres - Essa classe média
em grande parte deixou o país. Há
centenas de milhares de exilados
nos Estados Unidos, no Canadá,
na Europa, na Austrália ou no Japão. Quem falava inglês ou havia
frequentado uma universidade
dificilmente permaneceu no país.
Há hoje poucos médicos, técnicos
ou pesquisadores. O país perdeu
sua mão-de-obra qualificada.
Folha - O Taleban não se esforçou
para trazer essa gente de volta?
Centlivres - O Taleban tinha apenas duas prioridades: a guerra
contra os opositores do norte e a
reimplantação da moral islâmica
como eles a concebem.
Folha - Antes de 1996 havia prostitutas em Cabul?
Centlivres - Sim, prostitutas e
também rapazes de programa.
Eles continuaram a trabalhar,
apesar da repressão. Mas não é a
única ligação entre sexualidade e
dinheiro. Rapazes pobres casam-se tarde porque não têm o dote
para a família da noiva.
Folha - Os movimentos de reforma não conseguiram acabar com
esse sistema de comercialização?
Centlivres - Os reformistas tentaram baixar aquilo que se chama
de "o preço da noiva". Uma noiva
vale o preço de algumas vacas.
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