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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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ARTIGO

Política externa de Lula segue a cartilha de Rio Branco

DEMÉTRIO MAGNOLI
ESPECIAL PARA A FOLHA


Lula não fez concessões à melíflua linguagem da diplomacia. Em Quito, afirmou que o Brasil deve liderar a América do Sul e se prepara para "desabrochar de uma vez por todas, assumir sua grandeza e dar a contribuição que tem de dar à América do Sul e ao mundo". "Vamos desbravar a América do Sul, tão próxima e tão distante."
Não eram palavras vazias. Naquele momento, estava se formando, por iniciativa brasileira, os Amigos da Venezuela, uma ferramenta para contornar e substituir a ineficaz mediação da OEA no conflito venezuelano. Para os EUA, a alternativa foi aderir.
Alguns se surpreenderam com a "nova" diplomacia brasileira. Não há motivo: Lula comporta-se, no cenário externo, como herdeiro da tradição principal da diplomacia brasileira. A liderança da América do Sul foi a meta do barão do Rio Branco, o "pai fundador" da nossa política externa contemporânea.
Rio Branco conduziu o Itamaraty de 1902 até a sua morte, em 1912. Na "década do barão", a velha Europa das potências começava a desmoronar, e a hegemonia mundial britânica se apagava. O barão registrou os sinais da ascensão dos EUA à condição de maior potência mundial e promoveu o realinhamento de nossa política externa. Seu primeiro ato foi nomear Joaquim Nabuco para a embaixada em Washington. Pouco depois, afrontando a Argentina, ofereceu apoio tácito ao Corolário Roosevelt, a "diplomacia do porrete" dos EUA na América Latina.
Nabuco era um ardoroso americanista, mas o coração de Rio Branco só pulsava pelo que ele entendia como o interesse nacional. A parceria privilegiada com Washington era uma estratégia para assegurar a autonomia possível para o Brasil e uma plataforma para "desbravar a América do Sul".
O caminho para a América do Sul passa pela América do Norte, pensava o barão. Sob a sua orientação, o Brasil arbitrou as divergências entre a Argentina e o Chile e, com os dois, formou o grupo ABC, que pode ser interpretado como a semente da idéia de integração do Cone Sul. Essa tradição, filtrada pelas circunstâncias da globalização, coagulou-se no Mercosul e no projeto de integração da América do Sul elaborado por FHC e Lampreia. Lula segue uma trilha já percorrida, ainda que prefira apresentar-se como pioneiro.
Do ponto de vista do Brasil, não existe América Latina, só América do Sul. É a tirania da geografia: a sombra do gigante do norte cobre o México e a América Central, onde está o Canal do Panamá. Lula entendeu isso e não é casual que sempre se refira à América do Sul, o conjunto vertebrado pelas bacias do Prata e do Amazonas.
O seu discurso enfatiza a "reconstrução" do Mercosul, a importância estratégica do petróleo venezuelano, as possibilidades abertas pelo corredor equatoriano e peruano para o Pacífico e os mercados da Ásia. São temas tradicionais na nossa política externa.
A única surpresa é a referência explícita à "liderança" brasileira. Lula logo aprenderá que liderança não se proclama, se exercita. E insistir nessa expressão só serve para reavivar temores anacrônicos. As repúblicas hispano-americanas do século 19 cultuavam Bolívar e temiam o gigantismo do império escravista brasileiro. No século 20, os vizinhos, em especial a Argentina, colocaram-se em guarda ante o pensamento geopolítico militar inaugurado por Mário Travassos, que há 70 anos elaborou a doutrina da hegemonia estratégica brasileira na América do Sul.
Ecos da tradição. Antes de deflagrar a sua diplomacia sul-americana, Lula foi a Washington acertar-se com Bush. EUA e Brasil são co-presidentes da etapa decisiva de negociações da Alca. Nos próximos meses, o Brasil deve oferecer a sua proposta negociadora e conhecer a dos EUA. Assim, a única chance brasileira de interferir na configuração da Alca imaginada por Washington está na solidariedade sul-americana.
O Brasil é a única potência industrial da América do Sul. A sua agenda para a Alca envolve interesses diversificados, ofensivos e defensivos, nas esferas da propriedade intelectual, serviços financeiros, indústria e agroindústria. É uma agenda muito mais complexa que a das pequenas economias vizinhas, ávidas por brechas singulares no vasto mercado dos EUA. Lula movimenta-se para reunir, do mesmo lado da mesa que o Brasil, países potencialmente dispostos a qualquer coisa para ter acesso preferencial aos consumidores americanos. Esse é o sentido profundo da frenética atividade diplomática do presidente.
A política externa é o reino da tradição, não da invenção. O Lula de Quito reproduz e desdobra as velhas lições de Rio Branco. A diferença está na pressa, ditada pelas circunstâncias, e na linguagem, ditada pela inexperiência.


Demétrio Magnoli, 44, é doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo (USP) e editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional"


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