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ARTIGO
Política externa de Lula segue a cartilha de Rio Branco
DEMÉTRIO MAGNOLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Lula não fez concessões à melíflua linguagem da diplomacia. Em
Quito, afirmou que o Brasil deve liderar a América do Sul e se prepara para "desabrochar de uma vez
por todas, assumir sua grandeza e
dar a contribuição que tem de dar
à América do Sul e ao mundo".
"Vamos desbravar a América do
Sul, tão próxima e tão distante."
Não eram palavras vazias. Naquele momento, estava se formando, por iniciativa brasileira, os
Amigos da Venezuela, uma ferramenta para contornar e substituir
a ineficaz mediação da OEA no
conflito venezuelano. Para os
EUA, a alternativa foi aderir.
Alguns se surpreenderam com a
"nova" diplomacia brasileira. Não
há motivo: Lula comporta-se, no
cenário externo, como herdeiro da
tradição principal da diplomacia
brasileira. A liderança da América
do Sul foi a meta do barão do Rio
Branco, o "pai fundador" da nossa
política externa contemporânea.
Rio Branco conduziu o Itamaraty de 1902 até a sua morte, em
1912. Na "década do barão", a velha Europa das potências começava a desmoronar, e a hegemonia
mundial britânica se apagava. O
barão registrou os sinais da ascensão dos EUA à condição de maior
potência mundial e promoveu o
realinhamento de nossa política
externa. Seu primeiro ato foi nomear Joaquim Nabuco para a embaixada em Washington. Pouco
depois, afrontando a Argentina,
ofereceu apoio tácito ao Corolário
Roosevelt, a "diplomacia do porrete" dos EUA na América Latina.
Nabuco era um ardoroso americanista, mas o coração de Rio
Branco só pulsava pelo que ele entendia como o interesse nacional.
A parceria privilegiada com Washington era uma estratégia para
assegurar a autonomia possível
para o Brasil e uma plataforma para "desbravar a América do Sul".
O caminho para a América do
Sul passa pela América do Norte,
pensava o barão. Sob a sua orientação, o Brasil arbitrou as divergências entre a Argentina e o Chile
e, com os dois, formou o grupo
ABC, que pode ser interpretado
como a semente da idéia de integração do Cone Sul. Essa tradição,
filtrada pelas circunstâncias da
globalização, coagulou-se no Mercosul e no projeto de integração da
América do Sul elaborado por
FHC e Lampreia. Lula segue uma
trilha já percorrida, ainda que prefira apresentar-se como pioneiro.
Do ponto de vista do Brasil, não
existe América Latina, só América
do Sul. É a tirania da geografia: a
sombra do gigante do norte cobre
o México e a América Central, onde está o Canal do Panamá. Lula
entendeu isso e não é casual que
sempre se refira à América do Sul,
o conjunto vertebrado pelas bacias
do Prata e do Amazonas.
O seu discurso enfatiza a "reconstrução" do Mercosul, a importância estratégica do petróleo
venezuelano, as possibilidades
abertas pelo corredor equatoriano
e peruano para o Pacífico e os mercados da Ásia. São temas tradicionais na nossa política externa.
A única surpresa é a referência
explícita à "liderança" brasileira.
Lula logo aprenderá que liderança
não se proclama, se exercita. E insistir nessa expressão só serve para
reavivar temores anacrônicos. As
repúblicas hispano-americanas do
século 19 cultuavam Bolívar e temiam o gigantismo do império escravista brasileiro. No século 20, os
vizinhos, em especial a Argentina,
colocaram-se em guarda ante o
pensamento geopolítico militar
inaugurado por Mário Travassos,
que há 70 anos elaborou a doutrina da hegemonia estratégica brasileira na América do Sul.
Ecos da tradição. Antes de deflagrar a sua diplomacia sul-americana, Lula foi a Washington acertar-se com Bush. EUA e Brasil são co-presidentes da etapa decisiva de
negociações da Alca. Nos próximos meses, o Brasil deve oferecer a
sua proposta negociadora e conhecer a dos EUA. Assim, a única
chance brasileira de interferir na
configuração da Alca imaginada
por Washington está na solidariedade sul-americana.
O Brasil é a única potência industrial da América do Sul. A sua
agenda para a Alca envolve interesses diversificados, ofensivos e
defensivos, nas esferas da propriedade intelectual, serviços financeiros, indústria e agroindústria. É
uma agenda muito mais complexa
que a das pequenas economias vizinhas, ávidas por brechas singulares no vasto mercado dos EUA.
Lula movimenta-se para reunir,
do mesmo lado da mesa que o Brasil, países potencialmente dispostos a qualquer coisa para ter acesso
preferencial aos consumidores
americanos. Esse é o sentido profundo da frenética atividade diplomática do presidente.
A política externa é o reino da
tradição, não da invenção. O Lula
de Quito reproduz e desdobra as
velhas lições de Rio Branco. A diferença está na pressa, ditada pelas
circunstâncias, e na linguagem, ditada pela inexperiência.
Demétrio Magnoli, 44, é doutor em geografia humana pela Universidade de São
Paulo (USP) e editor do jornal "Mundo
Geografia e Política Internacional"
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