São Paulo, Domingo, 19 de Dezembro de 1999


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COMENTÁRIO
Entrega de Macau é metáfora da língua portuguesa ameaçada

RÉGIS BONVICINO
especial para a Folha

Hoje, Macau, cidade-Estado, conurbada com Hong Kong, volta a pertencer integralmente à República Popular da China. É o fim do "Império Português", que se iniciou no século 15, com a conquista de Ceuta. Macau, com cerca de 400 mil habitantes, vem sendo recuperada pela China desde os anos 60, mas se manteve, até agora, numa transição negociada, sob administração de Portugal.
Essa "passagem" é, em si, metáfora, que diz, igualmente, respeito ao Brasil: a da possibilidade real da extinção da língua portuguesa, em prazo não tão longo, num mundo sob intensa concorrência, inclusive, linguística. Ameaça que ganha corpo diante da ausência por parte do Estado brasileiro de uma política de expansão para a língua.
Não bastou que Luís de Camões tivesse escrito parte de "Os Lusíadas" lá, por volta de 1556, numa gruta estreita (hoje conhecida como Gruta de Camões), para que seu idioma respirasse mais vivo por este conjunto de ilhas.
Hoje ele tem existência "teórica": 95% da população fala chinês, e apenas 3% português. O budismo é a religião de mais de 50% dos macauenses, contra 15% de católicos. Não bastou também, portanto, que Camilo Pessanha, o simbolista, tenha vivido e escrito quase toda a sua obra por lá. Camilo é repudiado até hoje por seu racismo antichinês.
Em virtude desse cenário de "quarto minguante", é de espantar que alguém, nascido em Pequim, em 1958, tenha aprendido a língua de Camões e se tornado poeta bilíngue, escrevendo em chinês e português, indiferentemente. E que, por essa razão, tenha se mudado para Macau, em 1992.
É o caso de Yao Jingming, autor até aqui de "Nas Asas do Vento Cego" (Lisboa,1991) e de "Confluências" (Folha de Lótus, Macau, 1997), num movimento que propõe, como o do verso de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos): "um Oriente ao oriente do Oriente". Aliás, Yao é o principal tradutor para seu idioma materno da obra do próprio Pessoa.
A poesia chinesa pós-Mao, a partir da década de 80, abandonou as regras formais da poesia clássica e se estruturou em torno de diálogos com o Ocidente. Walt Whitman, Lorca, Neruda, Rilke, Baudelaire, Borges, Holderlin são alguns dos nomes que a influenciam e estimulam a produção de Bei Dao, o maior poeta chinês vivo, exilado nos EUA, e a de Yao, quer em chinês, quer em português. A poesia deixou, nesse período, de servir ao Partido Comunista e se abriu para todas as formas de expressão com liberdade.
Mas o que chama a atenção na poesia de Yao é o intercâmbio sintático que promove entre as duas línguas. Em português, conserva a força étnica e isolante do chinês e escreve quase que em "pictogramas". E para o chinês leva a outra tribo de sílabas que descobriu no português. Nas duas línguas, compõe em transições.
É o que deixa ver em "Ser e Estar", poema inédito, cedido especialmente à Folha: Às vezes / quero ser ... / Às vezes / quero estar ... / Às vezes / quero estar ... e ser ... / Juntam-se / todos os meus sentidos / moeda / em movimento / Sei que se vai extinguir / Não sei o que vai ficar". O poema, além de captar as investidas do capital ("moeda em movimento"), registra o português ameaçado pelo inglês, pelo espanhol, pelo chinês com 1,2 bilhão de falantes e que, por isso, talvez vá mesmo se extinguir, não só em Macau, se não houver luta e políticas de valorização etc.
Todavia ficará um português achinesado e um chinês aportuguesado na obra desse poeta promissor que se aventurou a uma espécie de "Oriente ao oriente do Oriente do Ocidente". E que nos mostra que, mais do que "exotismo", Macau é, ao mesmo tempo, diferença na voz de Jingming e semelhança na iminência de desaparecimento da identidade da língua.


Régis Bonvicino é poeta, autor de, entre outros, "Ossos de Borboleta" (Ed. 34)


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