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COMENTÁRIO
Entrega de Macau é metáfora da
língua portuguesa ameaçada
RÉGIS BONVICINO
especial para a Folha
Hoje, Macau, cidade-Estado,
conurbada com Hong Kong, volta a pertencer integralmente à República Popular da China. É o fim
do "Império Português", que se
iniciou no século 15, com a conquista de Ceuta. Macau, com cerca de 400 mil habitantes, vem sendo recuperada pela China desde
os anos 60, mas se manteve, até
agora, numa transição negociada,
sob administração de Portugal.
Essa "passagem" é, em si, metáfora, que diz, igualmente, respeito
ao Brasil: a da possibilidade real
da extinção da língua portuguesa,
em prazo não tão longo, num
mundo sob intensa concorrência,
inclusive, linguística. Ameaça que
ganha corpo diante da ausência
por parte do Estado brasileiro de
uma política de expansão para a
língua.
Não bastou que Luís de Camões
tivesse escrito parte de "Os Lusíadas" lá, por volta de 1556, numa
gruta estreita (hoje conhecida como Gruta de Camões), para que
seu idioma respirasse mais vivo
por este conjunto de ilhas.
Hoje ele tem existência "teórica": 95% da população fala chinês, e apenas 3% português. O budismo é a religião de mais de 50%
dos macauenses, contra 15% de
católicos. Não bastou também,
portanto, que Camilo Pessanha, o
simbolista, tenha vivido e escrito
quase toda a sua obra por lá. Camilo é repudiado até hoje por seu
racismo antichinês.
Em virtude desse cenário de
"quarto minguante", é de espantar que alguém, nascido em Pequim, em 1958, tenha aprendido a
língua de Camões e se tornado
poeta bilíngue, escrevendo em
chinês e português, indiferentemente. E que, por essa razão, tenha se mudado para Macau, em
1992.
É o caso de Yao Jingming, autor
até aqui de "Nas Asas do Vento
Cego" (Lisboa,1991) e de "Confluências" (Folha de Lótus, Macau, 1997), num movimento que
propõe, como o do verso de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos): "um Oriente ao oriente do
Oriente". Aliás, Yao é o principal
tradutor para seu idioma materno da obra do próprio Pessoa.
A poesia chinesa pós-Mao, a
partir da década de 80, abandonou as regras formais da poesia
clássica e se estruturou em torno
de diálogos com o Ocidente. Walt
Whitman, Lorca, Neruda, Rilke,
Baudelaire, Borges, Holderlin são
alguns dos nomes que a influenciam e estimulam a produção de
Bei Dao, o maior poeta chinês vivo, exilado nos EUA, e a de Yao,
quer em chinês, quer em português. A poesia deixou, nesse período, de servir ao Partido Comunista e se abriu para todas as formas de expressão com liberdade.
Mas o que chama a atenção na
poesia de Yao é o intercâmbio sintático que promove entre as duas
línguas. Em português, conserva
a força étnica e isolante do chinês
e escreve quase que em "pictogramas". E para o chinês leva a outra
tribo de sílabas que descobriu no
português. Nas duas línguas,
compõe em transições.
É o que deixa ver em "Ser e Estar", poema inédito, cedido especialmente à Folha: Às vezes / quero ser ... / Às vezes / quero estar ... /
Às vezes / quero estar ... e ser ... /
Juntam-se / todos os meus sentidos / moeda / em movimento / Sei
que se vai extinguir / Não sei o que
vai ficar". O poema, além de captar as investidas do capital ("moeda em movimento"), registra o
português ameaçado pelo inglês,
pelo espanhol, pelo chinês com
1,2 bilhão de falantes e que, por isso, talvez vá mesmo se extinguir,
não só em Macau, se não houver
luta e políticas de valorização etc.
Todavia ficará um português
achinesado e um chinês aportuguesado na obra desse poeta promissor que se aventurou a uma
espécie de "Oriente ao oriente do
Oriente do Ocidente". E que nos
mostra que, mais do que "exotismo", Macau é, ao mesmo tempo,
diferença na voz de Jingming e semelhança na iminência de desaparecimento da identidade da língua.
Régis Bonvicino é poeta, autor de, entre
outros, "Ossos de Borboleta" (Ed. 34)
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