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"PRÍNCIPE AMERICANO"
EUA têm dívida com a família Kennedy
CONTARDO CALLIGARIS
colunista da Folha, em Hyannisport
Em Hyannis, há três lugares
marcados pela presença dos Kennedy: o "Compound", que é o
grupo de casas de veraneio da família; o Museu JFK, que reúne fotografias dos momentos (sobretudo felizes) dos Kennedys em
Hyannis; e o Memorial de JFK,
baixo-relevo do rosto do presidente, de frente para o mar.
Nesta manhã de segunda, o
"Compound", visto de longe, é
majestoso. Impressiona a imensa
barraca branca erigida para o casamento de Rory Kennedy. Agora, quase na espera da cerimônia
fúnebre de John, parece uma metáfora que diz: aqui cada prazer se
paga com vidas.
De perto, o "Compound" é sitiado por repórteres do mundo
inteiro: uma selva de tele-câmeras, fios e antenas de satélites. A
polícia reserva o acesso desta área
aos jornalistas. É o lugar da espera
para alguma declaração oficial da
família ou para a aparição fugaz e
silenciosa de um Kennedy. Os repórteres passam o tempo se entrevistando reciprocamente. Os
americanos acabam gravando
considerações sobre a importância da morte de John Kennedy Jr.
para e por japoneses, franceses,
espanhóis. Quase me pegam.
Hoje o Museu é excepcionalmente gratuito: aqui sim, desfilam americanos, sobretudo turistas de outros Estados. Passam na
frente das fotografias antigas e recentes, apontam com o dedo, reconhecem, como se fossem fotos
de família: "Olha, é Ted, é Ethel;
antes ou depois da morte de
Bob?". "Olha John-John, mas olha
a data, devia ser duas semanas antes da viagem ao Texas." Os Kennedy são absolutamente de casa.
O Mausoléu tornou-se um dos
lugares de luto. Junto com o Museu Kennedy de Dorchester em
Boston e a calçada do apartamento de John e Carolyn, em Nova
York, o lugar vem se transformando em um altar. Aqui em
Hyannis são sobretudo flores, bilhetes aparentemente endereçados à família, um ursinho de pelúcia e outros brinquedos.
Entre os bilhetes, um me chama
a atenção. Diz (sem dúvida para o
presidente morto): "Olhe para o
mar onde foste um herói e reencontre teu filho". Macabro, mas
miticamente eficaz. O heroísmo
de JFK na guerra, quando quase
se afogou salvando seus subordinados, resgata o caráter mais privado da morte de John Jr..
Em um Honeydew Donuts, um
cliente ironiza sobre o movimento do aeroporto nos últimos dias,
com a imprensa mundial se precipitando para Cape Cod. Os outros
concordam. O mesmo cliente
acrescenta: "Tudo isso para um
cara que simplesmente sabia gozar da vida". A reação é gelada.
Quando o cliente sai, pergunto
para Rose, que serve o café: "Não
gostou do comentário?" Ela me
responde que eles todos poderiam ter tido uma vida muito boa.
É por isso que até as imagens frívolas de John Jr. e na verdade de
todos os Kennedy são comovedoras: John de patins, outro jogando
bola, esquiando, velejando etc: todos poderiam ter sido muito felizes. Mas colocaram algo acima da
vida. Morrem na guerra. Morrem
de ser presidente ou candidato,
como morrem de jogar futebol
americano esquiando ou de voar
à noite. Morrem de desejar algo
mais do que a vida. E como morrem sobretudo quando são homens e jovens, parecem soldados
oferecidos a uma pátria exigente.
Exigente, mas não ingrata. Não
precisou de mesada para sustentar John Jr., nem de instituição
para abrigá-lo, mas ele não deixa
de ser um órfão de guerra, o paradigma do filho da nação. Os EUA
tinham uma dívida com ele. E têm
uma dívida com os Kennedy.
Tanto maior, aliás, quanto mais é
confusa a interpretação dos assassinatos políticos dos anos 60:
quem foi? A Máfia, os cubanos ou
simplesmente o ódio que naqueles anos dilacerava o país?
Em uma loja em Boston escuto
também vozes críticas: dois jovens estão no caixa, universitários
trabalhando durante as férias. Todas as TVs falam da procura do
avião de John Kennedy. Os dois,
em voz alta, querendo provocar
os clientes, se perguntam: "Mas
não está tendo uma crise no processo de paz no Oriente Médio?".
O outro responde: "Oriente Médio? Mas o que é isso? Está brincando? Há um Kennedy faltando
à chamada e você quer falar do
Oriente Médio?"
Ontem, a revista "Time" distribuiu um número especial. Título:
Um Príncipe Americano. Ora,
nem todo o mundo gosta de uma
família real. Sem falar da inveja: a
América já foi uma terra de príncipes ou, no mínimo, já se imaginou como a terra de homens que
saberiam renunciar à vida para
seguir um sonho. Hoje seguir vivendo parece mais importante do
que desejar ou gozar. O culto social do bem-estar, da prevenção e
da longevidade decididamente
não é a receita dos Kennedy.
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