São Paulo, Terça-feira, 20 de Julho de 1999
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"PRÍNCIPE AMERICANO"
EUA têm dívida com a família Kennedy

CONTARDO CALLIGARIS
colunista da Folha, em Hyannisport

Em Hyannis, há três lugares marcados pela presença dos Kennedy: o "Compound", que é o grupo de casas de veraneio da família; o Museu JFK, que reúne fotografias dos momentos (sobretudo felizes) dos Kennedys em Hyannis; e o Memorial de JFK, baixo-relevo do rosto do presidente, de frente para o mar.
Nesta manhã de segunda, o "Compound", visto de longe, é majestoso. Impressiona a imensa barraca branca erigida para o casamento de Rory Kennedy. Agora, quase na espera da cerimônia fúnebre de John, parece uma metáfora que diz: aqui cada prazer se paga com vidas.
De perto, o "Compound" é sitiado por repórteres do mundo inteiro: uma selva de tele-câmeras, fios e antenas de satélites. A polícia reserva o acesso desta área aos jornalistas. É o lugar da espera para alguma declaração oficial da família ou para a aparição fugaz e silenciosa de um Kennedy. Os repórteres passam o tempo se entrevistando reciprocamente. Os americanos acabam gravando considerações sobre a importância da morte de John Kennedy Jr. para e por japoneses, franceses, espanhóis. Quase me pegam.
Hoje o Museu é excepcionalmente gratuito: aqui sim, desfilam americanos, sobretudo turistas de outros Estados. Passam na frente das fotografias antigas e recentes, apontam com o dedo, reconhecem, como se fossem fotos de família: "Olha, é Ted, é Ethel; antes ou depois da morte de Bob?". "Olha John-John, mas olha a data, devia ser duas semanas antes da viagem ao Texas." Os Kennedy são absolutamente de casa.
O Mausoléu tornou-se um dos lugares de luto. Junto com o Museu Kennedy de Dorchester em Boston e a calçada do apartamento de John e Carolyn, em Nova York, o lugar vem se transformando em um altar. Aqui em Hyannis são sobretudo flores, bilhetes aparentemente endereçados à família, um ursinho de pelúcia e outros brinquedos.
Entre os bilhetes, um me chama a atenção. Diz (sem dúvida para o presidente morto): "Olhe para o mar onde foste um herói e reencontre teu filho". Macabro, mas miticamente eficaz. O heroísmo de JFK na guerra, quando quase se afogou salvando seus subordinados, resgata o caráter mais privado da morte de John Jr..
Em um Honeydew Donuts, um cliente ironiza sobre o movimento do aeroporto nos últimos dias, com a imprensa mundial se precipitando para Cape Cod. Os outros concordam. O mesmo cliente acrescenta: "Tudo isso para um cara que simplesmente sabia gozar da vida". A reação é gelada.
Quando o cliente sai, pergunto para Rose, que serve o café: "Não gostou do comentário?" Ela me responde que eles todos poderiam ter tido uma vida muito boa.
É por isso que até as imagens frívolas de John Jr. e na verdade de todos os Kennedy são comovedoras: John de patins, outro jogando bola, esquiando, velejando etc: todos poderiam ter sido muito felizes. Mas colocaram algo acima da vida. Morrem na guerra. Morrem de ser presidente ou candidato, como morrem de jogar futebol americano esquiando ou de voar à noite. Morrem de desejar algo mais do que a vida. E como morrem sobretudo quando são homens e jovens, parecem soldados oferecidos a uma pátria exigente.
Exigente, mas não ingrata. Não precisou de mesada para sustentar John Jr., nem de instituição para abrigá-lo, mas ele não deixa de ser um órfão de guerra, o paradigma do filho da nação. Os EUA tinham uma dívida com ele. E têm uma dívida com os Kennedy. Tanto maior, aliás, quanto mais é confusa a interpretação dos assassinatos políticos dos anos 60: quem foi? A Máfia, os cubanos ou simplesmente o ódio que naqueles anos dilacerava o país?
Em uma loja em Boston escuto também vozes críticas: dois jovens estão no caixa, universitários trabalhando durante as férias. Todas as TVs falam da procura do avião de John Kennedy. Os dois, em voz alta, querendo provocar os clientes, se perguntam: "Mas não está tendo uma crise no processo de paz no Oriente Médio?". O outro responde: "Oriente Médio? Mas o que é isso? Está brincando? Há um Kennedy faltando à chamada e você quer falar do Oriente Médio?"
Ontem, a revista "Time" distribuiu um número especial. Título: Um Príncipe Americano. Ora, nem todo o mundo gosta de uma família real. Sem falar da inveja: a América já foi uma terra de príncipes ou, no mínimo, já se imaginou como a terra de homens que saberiam renunciar à vida para seguir um sonho. Hoje seguir vivendo parece mais importante do que desejar ou gozar. O culto social do bem-estar, da prevenção e da longevidade decididamente não é a receita dos Kennedy.


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