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DIA DE TERROR
Visto como aliado do governo americano, Vieira de Mello, que começou na ONU em 1969, especializou-se em situações de conflito
Brasileiro fez carreira fora do Itamaraty
DA REDAÇÃO
O diplomata brasileiro Sérgio
Vieira de Mello, 55, costumava dizer que havia construído sua carreira pisando sobre campos minados -muitas vezes, literalmente.
Com perfil de negociador duro,
mas fama de conciliador, era considerado um dos maiores especialistas dentro das Nações Unidas
na solução de conflitos e reconstrução de áreas arruinadas por
guerras civis.
Antes da missão no Iraque,
Vieira de Mello, filósofo de formação, serviu em Bangladesh, Sudão, Chipre, Moçambique, Peru,
Líbano, Camboja, Ruanda, ex-Iugoslávia e Timor Leste, durante
três décadas como diplomata.
Essa experiência lhe valeu a
confiança do secretário-geral da
ONU, Kofi Annan, seu principal
"padrinho" na organização.
Carioca, pai de dois filhos, Vieira de Mello sonhava alto. Não escondia o sonho de ser secretário-geral da ONU, sucedendo ao amigo Annan. Para isso, contava com
a simpatia do presidente George
W. Bush, fundamental para sua
indicação como representante especial no Iraque.
A proximidade com o regime
norte-americano era tal que sua
indicação para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, no ano passado,
foi recebida com desconfiança
por entidades de direitos humanos.
Temia-se que ele abdicasse de posições
duras contra o governo norte-americano
em nome da ascensão
profissional.
"Ele terá de provar
que vai enfrentar os
governos e ser uma
voz firme em favor das
vítimas de abusos",
disse, na ocasião, um
representante da ONG
Human Rights Watch.
Essa imagem, de
submissão ao governo
dos EUA, era uma das
coisas que mais incomodavam o brasileiro.
"É algo a que ele reagia com veemência",
diz sua assessora Luciana Mancini, que
serviu com Vieira de
Mello em Timor e em
Genebra (Suíça).
"Por ser diplomata,
ele não podia falar no
tom que as ONGs queriam, mas era bastante
duro quando necessário. Criticou
bastante o tratamento dispensados pelos EUA aos integrantes do
Taleban [antigo regime afegão]
presos em Guantánamo [base
norte-americana em Cuba]", afirma Mancini.
Ditador benevolente
Outro ponto em especial desagradava a Vieira de Mello: ser
confundido com um diplomata
dos quadros do Itamaraty.
Formado em ciências humanas
no Rio de Janeiro, prestou concurso para ser funcionário da
ONU em 1969 e foi aprovado.
Desprezou o Itamaraty por uma
mágoa pessoal: seu pai, embaixador de carreira e simpatizante esquerdista, foi cassado pelo regime
militar, nos anos 60. "Não fazia
sentido seguir aquela carreira naquele momento", dizia.
Desde o início, foi alocado no
Alto Comissariado da ONU para
Refugiados. Lá permaneceu por
duas décadas.
No início dos anos 90, passou a
se dedicar mais especificamente à
reconstrução de territórios dilacerados por guerras civis, em que
geralmente havia um componente de limpeza étnica.
Entre suas tarefas, desempenhou missão como enviado especial da ONU a Ruanda, país do
centro-africano que, na metade
dos anos 90, foi palco de um conflito entre as etnias hutu e tutsi
que deixou 800 mil mortos.
Nos últimos anos, a carreira teve ascensão meteórica. Em 1998,
tornou-se subsecretário da ONU
para assuntos humanitários.
Em 1999, após breve passagem
como representante especial para
Kosovo (território da antiga Iugoslávia), foi enviado a Timor por
Annan, para supervisionar o processo que levaria à independência
do ex-território indonésio. "Quero que você seja meu pequeno
Nelson Mandela", pediu Annan,
ao fazer-lhe o convite, em referência ao papel conciliador do ex-presidente sul-africano após o fim
do regime racista em seu país.
Em Timor, ex-colônia portuguesa, ele atuou com carta-branca
de Annan para gerir o orçamento,
indicar ministros e literalmente
criar instituições como o Parlamento e o Banco Central. Atuava
como um "ditador benevolente",
em suas próprias palavras.
Mas tinha a consciência de que
missões da ONU devem durar
apenas o suficiente. Caso se alastrem por tempo demais, geram
ressentimento.
"O que mais quero é entregar a
chave desta sala para Xanana
Gusmão [primeiro presidente timorense] o mais rápido possível.
O povo já está me olhando feio",
disse ele à Folha, em entrevista
em seu gabinete em Dili, capital
de Timor, em abril de 2001.
Manteve a opinião em Bagdá. A
incerteza sobre o fim da ocupação
internacional gera instabilidade,
dizia. "Os iraquianos precisam saber quando a ocupação acabará",
afirmou, há dois meses.
Em outra ocasião, reconheceu a
impaciência dos iraquianos. "As
pessoas, naturalmente, querem
melhorias, querem emprego.
Nossa tarefa é explicar que é preciso um certo tempo para que a
democracia comece a atender a
tais desejos".
Recentemente, Vieira de Mello
vinha fazendo pressão internamente nos meios diplomáticos
por uma maior presença da ONU
no processo de reconstrução.
A gestão em Timor foi elogiada
como um caso raro de sucesso de
uma ação da ONU na resolução
de conflito. Foi o que o credenciou para o posto no Iraque.
No intervalo, porém, veio o convite para ser o alto comissário da
ONU para Direitos Humanos, em
julho do ano passado.
O momento era especialmente
turbulento -a titular anterior do
cargo, a irlandesa Mary Robinson, perdera uma queda-de-braço com os EUA, que a acusavam
de ser demasiadamente partidária das ONGs atuantes na área.
Novamente, o brasileiro usou
sua metáfora preferida para descrever a nova tarefa: "O cargo é
um verdadeiro campo minado."
Em suas primeiras entrevistas,
tratou de condenar a "politização" da gestão anterior, para horror dos ativistas.
Longe de casa
Vieira de Mello ressentia-se do
fato de não pode visitar com mais
frequência o Brasil. Vinha ao país
em média uma vez por ano, para
visitar a mãe, que mora ainda no
Rio. A última visita foi no final do
ano passado.
Em Dili, cidade que, como o
Rio, tem uma baía e um Cristo Redentor, dizia sentir ainda mais
saudade de casa. Tinha uma predileção pelo Sudeste Asiático: antes de assumir o comissariado de
Direitos Humanos, passou dois
meses em férias no Vietnã.
Era descrito por amigos como
sério e viciado em trabalho. Jornadas de mais de 12 horas não
eram incomuns. Nas horas de folga, jogava tênis e lia, principalmente literatura francesa.
Também gostava de idiomas.
Era fluente em inglês, francês, italiano e alemão. Em Timor, aprendeu o teto, a língua franca dos habitantes da ilha. Recentemente,
passou a "arranhar" o árabe.
"Ele não se importava em mergulhar numa missão, mesmo que
isso significasse separar-se da família. Fez isso a vida inteira", afirma a assessora Luciana Mancini .
Outro amigo, o deputado federal João Herrmann (PPS-SP), define Vieira como um "globe-trotter". "Era um diplomata que não
ficava fechado no gabinete e tinha
predileção por conhecer as situações pessoalmente", afirma.
Na semana passada, ao falar
com uma assessora, Vieira de Mello havia reforçado a intenção de
retornar a seu posto em Genebra,
do qual havia se licenciado para a
missão em Bagdá. Pretendia fazê-lo em outubro, mas apenas se a situação no Iraque se mostrasse
mais estável e se a ONU tivesse garantias de segurança.
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