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São Paulo, quarta-feira, 20 de agosto de 2003

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DIA DE TERROR

Visto como aliado do governo americano, Vieira de Mello, que começou na ONU em 1969, especializou-se em situações de conflito

Brasileiro fez carreira fora do Itamaraty

DA REDAÇÃO

O diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, 55, costumava dizer que havia construído sua carreira pisando sobre campos minados -muitas vezes, literalmente.
Com perfil de negociador duro, mas fama de conciliador, era considerado um dos maiores especialistas dentro das Nações Unidas na solução de conflitos e reconstrução de áreas arruinadas por guerras civis.
Antes da missão no Iraque, Vieira de Mello, filósofo de formação, serviu em Bangladesh, Sudão, Chipre, Moçambique, Peru, Líbano, Camboja, Ruanda, ex-Iugoslávia e Timor Leste, durante três décadas como diplomata.
Essa experiência lhe valeu a confiança do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, seu principal "padrinho" na organização.
Carioca, pai de dois filhos, Vieira de Mello sonhava alto. Não escondia o sonho de ser secretário-geral da ONU, sucedendo ao amigo Annan. Para isso, contava com a simpatia do presidente George W. Bush, fundamental para sua indicação como representante especial no Iraque.
A proximidade com o regime norte-americano era tal que sua indicação para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, no ano passado, foi recebida com desconfiança por entidades de direitos humanos.
Temia-se que ele abdicasse de posições duras contra o governo norte-americano em nome da ascensão profissional.
"Ele terá de provar que vai enfrentar os governos e ser uma voz firme em favor das vítimas de abusos", disse, na ocasião, um representante da ONG Human Rights Watch.
Essa imagem, de submissão ao governo dos EUA, era uma das coisas que mais incomodavam o brasileiro.
"É algo a que ele reagia com veemência", diz sua assessora Luciana Mancini, que serviu com Vieira de Mello em Timor e em Genebra (Suíça).
"Por ser diplomata, ele não podia falar no tom que as ONGs queriam, mas era bastante duro quando necessário. Criticou bastante o tratamento dispensados pelos EUA aos integrantes do Taleban [antigo regime afegão] presos em Guantánamo [base norte-americana em Cuba]", afirma Mancini.

Ditador benevolente
Outro ponto em especial desagradava a Vieira de Mello: ser confundido com um diplomata dos quadros do Itamaraty.
Formado em ciências humanas no Rio de Janeiro, prestou concurso para ser funcionário da ONU em 1969 e foi aprovado.
Desprezou o Itamaraty por uma mágoa pessoal: seu pai, embaixador de carreira e simpatizante esquerdista, foi cassado pelo regime militar, nos anos 60. "Não fazia sentido seguir aquela carreira naquele momento", dizia.
Desde o início, foi alocado no Alto Comissariado da ONU para Refugiados. Lá permaneceu por duas décadas.
No início dos anos 90, passou a se dedicar mais especificamente à reconstrução de territórios dilacerados por guerras civis, em que geralmente havia um componente de limpeza étnica.
Entre suas tarefas, desempenhou missão como enviado especial da ONU a Ruanda, país do centro-africano que, na metade dos anos 90, foi palco de um conflito entre as etnias hutu e tutsi que deixou 800 mil mortos.
Nos últimos anos, a carreira teve ascensão meteórica. Em 1998, tornou-se subsecretário da ONU para assuntos humanitários.
Em 1999, após breve passagem como representante especial para Kosovo (território da antiga Iugoslávia), foi enviado a Timor por Annan, para supervisionar o processo que levaria à independência do ex-território indonésio. "Quero que você seja meu pequeno Nelson Mandela", pediu Annan, ao fazer-lhe o convite, em referência ao papel conciliador do ex-presidente sul-africano após o fim do regime racista em seu país.
Em Timor, ex-colônia portuguesa, ele atuou com carta-branca de Annan para gerir o orçamento, indicar ministros e literalmente criar instituições como o Parlamento e o Banco Central. Atuava como um "ditador benevolente", em suas próprias palavras.
Mas tinha a consciência de que missões da ONU devem durar apenas o suficiente. Caso se alastrem por tempo demais, geram ressentimento.
"O que mais quero é entregar a chave desta sala para Xanana Gusmão [primeiro presidente timorense] o mais rápido possível. O povo já está me olhando feio", disse ele à Folha, em entrevista em seu gabinete em Dili, capital de Timor, em abril de 2001.
Manteve a opinião em Bagdá. A incerteza sobre o fim da ocupação internacional gera instabilidade, dizia. "Os iraquianos precisam saber quando a ocupação acabará", afirmou, há dois meses.
Em outra ocasião, reconheceu a impaciência dos iraquianos. "As pessoas, naturalmente, querem melhorias, querem emprego. Nossa tarefa é explicar que é preciso um certo tempo para que a democracia comece a atender a tais desejos".
Recentemente, Vieira de Mello vinha fazendo pressão internamente nos meios diplomáticos por uma maior presença da ONU no processo de reconstrução.
A gestão em Timor foi elogiada como um caso raro de sucesso de uma ação da ONU na resolução de conflito. Foi o que o credenciou para o posto no Iraque.
No intervalo, porém, veio o convite para ser o alto comissário da ONU para Direitos Humanos, em julho do ano passado.
O momento era especialmente turbulento -a titular anterior do cargo, a irlandesa Mary Robinson, perdera uma queda-de-braço com os EUA, que a acusavam de ser demasiadamente partidária das ONGs atuantes na área.
Novamente, o brasileiro usou sua metáfora preferida para descrever a nova tarefa: "O cargo é um verdadeiro campo minado." Em suas primeiras entrevistas, tratou de condenar a "politização" da gestão anterior, para horror dos ativistas.

Longe de casa
Vieira de Mello ressentia-se do fato de não pode visitar com mais frequência o Brasil. Vinha ao país em média uma vez por ano, para visitar a mãe, que mora ainda no Rio. A última visita foi no final do ano passado.
Em Dili, cidade que, como o Rio, tem uma baía e um Cristo Redentor, dizia sentir ainda mais saudade de casa. Tinha uma predileção pelo Sudeste Asiático: antes de assumir o comissariado de Direitos Humanos, passou dois meses em férias no Vietnã.
Era descrito por amigos como sério e viciado em trabalho. Jornadas de mais de 12 horas não eram incomuns. Nas horas de folga, jogava tênis e lia, principalmente literatura francesa.
Também gostava de idiomas. Era fluente em inglês, francês, italiano e alemão. Em Timor, aprendeu o teto, a língua franca dos habitantes da ilha. Recentemente, passou a "arranhar" o árabe.
"Ele não se importava em mergulhar numa missão, mesmo que isso significasse separar-se da família. Fez isso a vida inteira", afirma a assessora Luciana Mancini .
Outro amigo, o deputado federal João Herrmann (PPS-SP), define Vieira como um "globe-trotter". "Era um diplomata que não ficava fechado no gabinete e tinha predileção por conhecer as situações pessoalmente", afirma.
Na semana passada, ao falar com uma assessora, Vieira de Mello havia reforçado a intenção de retornar a seu posto em Genebra, do qual havia se licenciado para a missão em Bagdá. Pretendia fazê-lo em outubro, mas apenas se a situação no Iraque se mostrasse mais estável e se a ONU tivesse garantias de segurança.


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