São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GUERRA NO ORIENTE MÉDIO

Nasrallah vira ídolo pop e trunfo político na Síria

Sem disparar um tiro, país sai como vencedor da guerra entre Israel e Hizbollah

Ascensão do líder do grupo xiita a herói da causa árabe fortalece ditador Assad, que tenta romper isolamento imposto por Washington

MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A DAMASCO

As ruas de Damasco são um monumento à "resistência libanesa". Bandeiras do Hizbollah estão em cada esquina e o rosto de seu líder, Hassan Nasrallah, estampa camisetas, chaveiros, cadernos escolares e todo tipo de objeto exaltando o novo "herói" do mundo árabe. Na mesma onda de popularidade que o transformou em ídolo pop no país, Nasrallah também se tornou o maior trunfo político do regime sírio, que sai da guerra entre Israel e o Hizbollah como um claro vencedor.
Ainda haverá muita discussão para apontar vitoriosos e derrotados, mas é inegável que o regime controlado com mão de ferro pelo ditador Bashar Assad foi fortalecido pelo conflito. Antes da guerra, o país estava isolado até no mundo árabe, sofria a pressão internacional maciça da investigação sobre o assassinato do ex-premiê libanês Rafik Hariri, na qual é o maior suspeito, e não via nenhuma chance de recuperar as colinas do Golã, que perdeu para Israel em 1967.
Agora, analistas do peso de Thomas Friedman, do "New York Times", criticam Washington por ter congelado os canais diplomáticos com Damasco, o chanceler sírio é recebido com honras em Beirute, o ministro da Defesa de Israel diz que é hora de negociar e o regime de Assad experimenta solidez e popularidade doméstica que há muito não tinha. E a investigação da ONU sobre Hariri, dizem analistas, está cada vez mais longe de Damasco.
O ditador sírio não perdeu tempo em colher os louros. Em um raivoso discurso feito esta semana em Damasco, Assad proclamou a vitória da "resistência" e atacou Israel, os Estados Unidos e os inimigos libaneses, liderados por Saad Hariri, filho do ex-premiê. Num comentário irônico sobre os planos americanos de democratizar a região, Assad disse que a "vitória" do Hizbollah contra Israel é que marca o início de um "novo Oriente Médio".

Hora do troco
"Depois de toda a pressão sofrida, foi a hora de dar o troco", diz Joshua Landis, especialista em Síria da Universidade de Oklahoma, no EUA, que recentemente concluiu um ano de pesquisas no país. "Antes da guerra o governo tinha a sensação de que era impossível agradar a Washington e que não tinha nenhuma carta nesse jogo. Agora Damasco se sente forte. E deve isso ao Hizbollah."
A política oficial de aliança com o grupo xiita é uma realidade visível nas ruas, lojas, restaurantes e cafés de Damasco, onde o amarelo predomina e o entusiasmo em torno de Nasrallah parece ser espontâneo, mesmo num país em que tudo é controlado pelo governo e a dissidência pode dar cadeia. "Finalmente surgiu alguém para derrotar Israel. Como não vamos apoiá-lo?", pergunta Saed, vendedor de suco no movimentado bazar da cidade velha de Damasco. Na cabeça, uma faixa do grupo xiita. No peito, uma foto de Nasrallah estampada numa camiseta cinza.
A dívida de Assad com Nasrallah é anterior à guerra do Hizbollah contra Israel. No ano passado, pouco após o atentado que matou Hariri em Beirute, quando todos as suspeitas apontavam para Assad e crescia o movimento pela retirada da Síria, Nasrallah deu uma impressionante demonstração de força, colocando um milhão de pessoas numa praça de Beirute em apoio a Damasco.
Meses depois, a pressão internacional poria fim a 29 anos de domínio sírio, mas a aliança com o grupo xiita ficou ainda mais sólida, assim como a aproximação com o Irã, outra parceria estratégica para o regime de Assad. "Há uma clara confluência de interesses entre a Síria, o Irã e o Hizbollah", explica o analista Steven Cook, num relatório recente do Council of Foreign Relations.
A Síria apoiou o Irã na guerra contra o Iraque (1980-1988), rompendo o consenso árabe e refletindo a rivalidade de sua corrente baathista com a de Saddam Hussein. O país recebe milhares de turistas iranianos anualmente, em peregrinação a locais sagrados xiitas na Síria. A confluência se completa na aliança com o Hizbollah, que recebe o apoio político e militar de Damasco e cerca de US$ 100 milhões por ano de Teerã.
As afinidades políticas compensam o mar cultural que separa Teerã e Damasco. O Irã é uma teocracia xiita. A Síria é uma ditadura secular dominada pela minoria alauíta que controla o partido Baath. Nas ruas de Damasco, mulheres xiitas cobertas de negro da cabeça aos pés cruzam com meninas cristãs de minissaia, que se divertem instalando nos celulares "ringtones" que fazem soar frases do líder do Hizbollah quando o telefone toca.
A popularidade de Nasrallah se estendeu ao ditador sírio, que radicalizou o discurso contra Israel, mas manteve uma brecha para o diálogo. "A guerra serviu para devolver o foco à Síria, que é recuperar o Golã", diz Landis. "Agora que está fortalecido, Assad deverá sinalizar que está disposto a negociar."


Texto Anterior: Israel viola o cessar-fogo e ataca Líbano
Próximo Texto: Apesar da destruição, líder xiita ganha a aura mítica de Nasser
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.