São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2006

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Apesar da destruição, líder xiita ganha a aura mítica de Nasser

ROULA KHALAF
DO "FINANCIAL TIMES"

Enfrentar Israel representa um bilhete para o estrelato, no mundo árabe. Humilhados por repetidas derrotas militares e pela ocupação persistente, desiludidos pelos fracassos políticos em seus próprios países, os árabes ficam hipnotizados quando alguém aparece para reafirmar sua dignidade e desafiar o Estado judeu.
Assim, não deve constituir surpresa para ninguém o fato de Hassan Nasrallah, o líder do Hizbollah, ter alcançado status de ícone em todo o Oriente Médio. Enquanto os militantes xiitas se desviavam dos ataques israelenses, disparavam foguetes e infligiam baixas pesadas em campo, a aura que cerca Nasrallah foi crescendo, atravessando a divisão sectária entre xiitas e sunitas e alcançando o status mítico de outro herói árabe, o egípcio Gamal Abdel Nasser.
Nasrallah elevou ainda mais seu status com discursos televisionados proferidos de seu esconderijo. Ele detalhava as operações militares do Hizbollah com calma e rigor e zombava de Israel e seus líderes. Descrevendo seus combatentes como "heróis que escrevem épicos e operam milagres", Nasrallah, na semana passada, lembrou aos ouvintes que, ao derrotar o objetivo israelense de esmagar sua organização, esta havia obtido algo que Exércitos árabes nunca conseguiram.
A devastação do sul e outras partes do Líbano é testemunha do preço colossal que o país pagou pela guerra. No entanto, Nasrallah, de 46 anos, emergiu do conflito mais forte que antes, e sua liderança foi essencial para a construção de uma guerrilha destemida e disciplinada.

Filho morto
Quando o mais velho de seus quatro filhos morreu em combate, em 1997, Nasrallah foi adiante com um discurso já programado, insistindo que não demonstraria fraqueza diante do inimigo. "Mas quando você está sozinho consigo mesmo ou com sua família, ali onde o inimigo não o vê, então você pode dar rédea solta às emoções", reconheceu certa vez em entrevista.
Entretanto, Nasrallah iniciou o conflito mais recente com um sério erro de cálculo. Aparentemente, ele previra que a incursão em território israelense em 12 de julho, na qual foram capturados dois soldados, provocaria reação apenas limitada de Israel e resultaria numa troca de prisioneiros.
Ele enfrentou críticas no Líbano pela decisão unilateral de levar o país a uma guerra que atende aos interesses do Irã e da Síria, mas não os do próprio Líbano. Apesar disso, Nasrallah foi se fortalecendo à medida que foi liderando a contra-ofensiva e vendo a população unir-se em torno do Hizbollah.
Em um dos momentos mais teatrais do conflito, no fim de um discurso gravado, ele pediu aos libaneses que olhassem em direção ao mar e assistissem às conquistas do Hizbollah. De fato, a cena no Mediterrâneo era dramática: chamas se erguendo de uma embarcação israelense.
Nasrallah tem se mostrado tão eficiente e à vontade liderando um partido político quanto é no comando de uma guerra de guerrilha. Nascido de uma família xiita libanesa modesta, como o mais velho de nove filhos, ele entrou para a política aos 15 anos, quando ingressou no movimento Amal. Este era o principal partido xiita libanês, que defendia a causa da minoria que era a maior do país, mas marginalizada. Na cidade santa iraquiana de Najaf, conheceu Abbas Musawi, que se tornaria seu mentor e fundaria o Hizbollah após a invasão israelense do Líbano em 1982.
Nasrallah ascendeu rapidamente nas fileiras do Hizbollah e, quando Musawi foi assassinado, em 1992, foi escolhido para o seu lugar. Sob sua liderança, o Hizbollah desenvolveu-se em duas frentes: a militar e a política.
Nasrallah conduziu a resistência à ocupação israelense, com ataques contra alvos militares israelenses no sul do Líbano, fazendo do Hizbollah uma fonte de inspiração não só para os palestinos mas também para o exército Mahdi iraquiano, uma milícia xiita.
O Hizbollah é visto como o partido político mais organizado do país, embora, no sistema sectário de cotas parlamentares do Líbano, o grupo detenha apenas 14 das 128 cadeiras do Parlamento. No momento em que o Líbano emerge do trauma da guerra, o poder político fortalecido do Hizbollah é motivo de orgulho para os xiitas, mas provoca temor nas outras comunidades religiosas do país.
A pergunta que vem sendo feita a Nasrallah é se a busca por um governo forte e coeso pode ser conciliada com o cada vez mais forte "Estado dentro do Estado" erguido pelo Hizbollah. "Se o secretário-geral do Hizbollah se tornou o presidente do Líbano, ele deveria nos informar disso", declarou na semana o ex-presidente Amin Gemayel.
Nasrallah aceitou o cessar-fogo mediado pela ONU e o envio de tropas do Exército libanês ao sul do país. Mas não tem nenhuma intenção de desarmar seu grupo, conforme pedem as resoluções da ONU. Entretanto, depois de dar-se bem no comando de uma guerra, a prova que Nasrallah enfrentará agora é administrar a paz e impedir a erupção de outro espasmo de violência, desta vez no interior da própria sociedade libanesa dividida.


Tradução de CLARA ALLAIN


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