São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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ÁFRICA

Por volta de 54% dos cerca de 17,6 milhões de habitantes do país são desnutridos; 515 mil pessoas já padecem de fome

Moçambique enfrenta desnutrição e seca

Sérgio Veiga/Folha Imagem - 4.jul.2002
Moçambicana lava roupa em rio de cidade ao sul de Maputo


EM MOÇAMBIQUE

Garrafas de Coca-Cola gigantes enfeitam as ruas da cidade de Maputo, no sinal mais claro de que Moçambique se abriu para a economia de mercado e de que o regime socialista, a que o governo da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) renunciou em 1990, não passa de uma nostalgia expressa no nome das ruas e avenidas da cidade: avenida Ho Chi Min, avenida Lênin, avenida Salvador Allende, avenida Mao Tsé-tung, avenida Karl Marx, avenida Patrice Lumumba.
"A Frelimo se converteu em outra coisa. Eles próprios confessam, já são social-democratas", observou o escritor moçambicano Mia Couto em entrevista à Folha em Maputo.
Militante do partido desde sua fundação, Couto contou porque já não se sente mais um membro do grupo como antes: "Eu agora fui para o Congresso da Frelimo e tenho muitas críticas. Acho que já não sou da Frelimo, porque o partido passou a ter um discurso falseado, mascarado, com objetivos ainda socialistas quando eles todos já se tinham convertido em empresários de sucesso".
A abertura da economia não parece ter melhorado a situação do país. Relatório divulgado em junho pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) estima em 515 mil o número de pessoas que já padecem de fome em 43 distritos das regiões sudeste e central de Moçambique neste ano, vítimas da seca que afetou a estação de colheita 2001/2002.
Embora o país tenha recebido elogios recentes do FMI (Fundo Monetário Internacional) pela "forte recuperação" de sua economia depois das cheias de 2000/ 2001, as piores dos últimos 50 anos, com previsão de crescimento econômico de 9% para este ano, continua entre os cinco piores no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU.
Cerca de 54% dos 17,6 milhões de habitantes de Moçambique são desnutridos. Somente 5,8% dispõem de energia elétrica e só 5,1% têm aparelho de televisão -no Brasil, segundo o Censo 2000, 93% da população dispõe de energia elétrica e 87% possuem aparelho de TV.
"Essas 515 mil pessoas que sofrem de fome em Moçambique representam 3% da população nacional. Não é um índice tão grande. Mas olhar a questão do ponto de vista nacional pode mascarar a verdade. Dentro da região onde foram feitas as avaliações da FAO, esse número corresponde a 15% da população local de zonas onde há grande incidência de fome crônica, afetadas por dois desastres consecutivos, cheias e seca", explicou João Manja, economista e técnico de programas no escritório da FAO em Maputo.
Manja aponta ainda a epidemia de Aids -"que ameaça a segurança alimentar, por causa da incapacidade das pessoas de poderem trabalhar nas suas machambas [roças", onde elas próprias servem de mão-de-obra"- e a diminuição das oportunidades de emprego para moçambicanos na África do Sul e no Zimbábue como fatores que vêm afetando drasticamente a economia moçambicana.
"O emprego na África do Sul tem uma importância muito grande para as províncias do sul de Moçambique", disse ele. "A mudança nas políticas sul-africanas de recrutamento de mão-de-obra, e até mesmo o declínio da indústria mineira, que era o principal setor que absorvia a mão-de-obra moçambicana, empataram na capacidade das famílias daqui de sobreviverem."
Moradores das zonas rurais da Grande Maputo já sentem os efeitos da seca. É o caso de Fernando Mahanhane Mwhambo, 46, morador de Goba, 60 km ao sul da capital. Num dia frio do ameno inverno moçambicano, Mwhambo confessou à reportagem que não sabia o que daria de comer aos quatro filhos no dia seguinte.
"Hoje, comemos milho e feijão. Para amanhã, fiz uma armadilha para caça, a ver se pego alguma coisa e vendo." Pequeno agricultor, cultiva uma pequena plantação de milho, feijão, batata-doce e mandioca, "quando chove". Há um mês, ficou viúvo e não sabe de que doença a mulher morreu dentro da cabana de palha de 5 m2 onde ele vive com os filhos.
A desnutrição também afetou Zacarias Pedro Monguambe, 14, mas com altura correspondente a uma criança de 9 ou 10 anos. Zacarias ia tentar vender uma carroça de lenha por cerca de R$ 15 em Boane, a 25 km de Maputo. Contou que depois voltaria para casa carregando água, que retira do rio Umbeluzi. Disse que os únicos móveis de sua casa são um fogão a lenha e um rádio. Cursa o equivalente à 5ª série, quer ser professor e sonha em morar um dia na cidade, "porque a vida lá é boa e eu vou bem em matemática, tive nota 14" (a máxima é 20). (MARILENE FELINTO)


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