São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 2003 |
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ARTIGO Por um diálogo entre o Ocidente e o Islã
DEMÉTRIO MAGNOLI
"O Ocidente dominou o mundo
não pela superioridade das suas
idéias, valores ou religião, mas pela sua superioridade na aplicação
da violência organizada", escreveu Samuel Huntington. O autor
do "Choque de Civilizações"
completou: "Ocidentais frequentemente esquecem esse fato; não-ocidentais nunca esquecem".
Mas esse desenvolvimento foi abortado pela crise do califado abácida e pela invasão dos mongóis. A grande perturbação dos espíritos que fundou o Ocidente contemporâneo chegou ao Islã no final do século 19, quando uma geração de modernistas entregou-se à aventura de reformar as sociedades muçulmanas. O intelectual egípcio Muhammad Abduh (1849-1905) queria "liberar o pensamento dos grilhões da imitação" e reconciliar a religião com a investigação científica. O sírio Rashid Rida (1865-1935) propunha a distinção entre as doutrinas religiosas imutáveis e as leis sociais, que deveriam se adaptar às circunstâncias. A paixão pelas idéias do Ocidente acompanhou, como uma sombra, a expansão imperial européia sobre o islã. Na Índia, enquanto se instalava o poder britânico, o erudito muçulmano Sayyd Ahmad Khan (1817-98) tentava encaixar o Islã no liberalismo político. No Irã, os intelectuais Mulkhum Khan (1833-1908) e Aqa Khan Kirmani (1853-96) pretendiam substituir a "sharia" por um código civil secular. A obra "Admoestação à Nação", do xeque Muhammad Husain Naini, fez a defesa da revolução constitucional de 1906 e argumentou em favor de um governo de estilo ocidental. Aí se encontram as raízes do pensamento de Muhammad Kathami, o atual presidente iraniano, que desafia o poder do clero xiita. A evolução do modernismo no interior do Islã, porém, foi cortada pelo advento do nacionalismo, que aparecia como instrumento para a luta contra as potências coloniais. A modernização passou a operar fora das estruturas de pensamento do Islã e contra elas. No pós-guerra, o pan-arabismo representou uma tentativa retardatária de modernizar as sociedades árabes e separar a política da religião. O fracasso dessas tentativas ou seja, a falência do egípcio Nasser no combate contra Israel e a dissolução das esperanças depositadas no partido Baath, ativaram os motores do fundamentalismo islãmico contemporâneo na Síria e no Iraque. Nos tempos medievais, durante sua expansão, o Islã salvou da destruição a filosofia e a ciência helenísticas. Conservou e aprimorou os livros e saberes dos povos que subjugou. Foi mestre da Europa cristã quando ela começou a romper o imobilismo feudal, ensinando-lhe parte de sua própria história. Hoje, quando a política árabe e o mundo muçulmano são assaltados pelas tentações anacrônicas da teocracia e do jihad, o Ocidente enxerga o Islã pelas lentes do preconceito, como se fosse a sua antítese, e os "senhores da guerra" de Washington imaginam-se portadores de uma nova verdade revolucionária. O estranhamento que separa o Ocidente do Islã é fruto de séculos de história. Os aviões que destruíram as torres gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, e a marcha das tropas americanas sobre Bagdá refletem tragicamente esse estranhamento e introduzem, na política mundial, o espectro do "choque de civilizações". O antídoto existe, mas depende de um diálogo entre o Ocidente e o Islã, centrado nos valores da Reforma e do Iluminismo. Entre árabes e muçulmanos, há incontáveis interessados nesse diálogo e há uma tradição modernista que resiste ao fundamentalismo. O obstáculo é o ruído ensurdecedor das bombas e a humilhação da ocupação. Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana pela USP e editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional"; Elaine Senise Barbosa, historiadora, é autora de "A Encruzilhada das Civilizações: Católicos, Ortodoxos e Muçulmanos no Velho Mundo" (Moderna, 1997) Texto Anterior: EUA prendem mais um dos procurados Próximo Texto: Oriente Médio: Novo gabinete leva a impasse com Arafat Índice |
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