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São Paulo, terça-feira, 22 de julho de 2003

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ARTIGO

Inquérito deve examinar também razões para a guerra

ROBIN COOK
ESPECIAL PARA O "INDEPENDENT"

Lorde Hutton foi intimado a fazer o impossível. Recebeu a incumbência de dirigir o inquérito sobre os acontecimentos que conduziram à trágica morte do doutor David Kelly e, ao mesmo tempo, foi alertado para que não estudasse os acontecimentos que conduziram à guerra no Iraque.
Nenhum juiz, por mais eminente, poderia conduzir um estudo completo e equilibrado das pressões que resultaram na morte de Kelly e manter, ao mesmo tempo, uma posição agnóstica entre as reservas científicas expressadas por Kelly e as alegações mais estridentes dos políticos.
O governo reconheceu que um inquérito judicial deveria ser realizado, mas ainda se apega à esperança de que possa mantê-lo constrito a limites estreitos. É preciso que reconheça o inevitável e aceite os argumentos em favor de um inquérito mais amplo.
O lamentável é que não o tenha feito dois meses atrás, quando começou a se tornar evidente que armas de destruição em massa não estavam sendo localizadas.
Se o governo tivesse anunciado um inquérito judicial no final de maio, poderia merecidamente assumir o crédito por sua abertura e pela disposição de esquadrinhar até o fundo as razões que levaram o Reino Unido à guerra com base em uma avaliação de inteligência que se provou falsa. Isso teria igualmente evitado as acusações gratuitas contra Kelly e as pressões malfazejas sobre ele.
Os piores escândalos políticos derivam não do erro original, mas das tentativas de negar e ocultar que o erro tenha acontecido. No caso, o governo optou por lançar uma guerra candente contra a BBC, para desviar a atenção do verdadeiro problema: os motivos para que tenha lançado sua guerra contra o Iraque.
Em lugar de ordenar um inquérito completo e independente, o primeiro-ministro Tony Blair passou os dois últimos meses afirmando, com aparente sinceridade, que todo o conteúdo do dossiê de setembro era correto. A única esperança que o governo tem de restaurar sua credibilidade é emergir de seu atual estado de negação e aceitar que parte das alegações feitas antes da guerra se provou falsa.
Blair se aproximou de admitir um erro, ainda que só no ambiente seguro e adulatório do Congresso norte-americano, mas se limitou a usar o condicional: "Se estivermos errados". Ele se recusa a admitir ao público que pode ter havido um erro, por medo da reação histérica de seus oponentes políticos a uma admissão de erro humano como essa.
E é nesse ponto que chegamos a um problema fundamental de nossa cultura política, a qual gerou o ambiente maligno no qual a tragédia do doutor Kelly se desen-rolou. A política perdeu a capacidade de discutir questões de maneira racional e ponderada. Em seu lugar, temos uma preocupação destrutiva com as personalidades e uma retórica de debate que busca sensacionalizar e, portanto, exagera os conflitos em lugar de procurar o consenso.
Mas o verdadeiro problema é que as pessoas comuns não infectam conversas cotidianas com o tom agressivo e o ânimo desafiador que se tornou comum na política moderna. E isso se tornou uma barreira entre o público e o Parlamento porque as pessoas decentes simplesmente não se dirigem umas às outras da maneira que os parlamentares se tratam na Câmara dos Comuns.
E a mídia de massa é parte dessa cultura destrutiva e sensacionalizante. Se Andrew Gilligan tivesse escrito uma reportagem moderada informando que alguns especialistas tinham reservas sóbrias e científicas sobre o dossiê de setembro, a história dos dois últimos meses teria sido diferente.
Mas optou por produzir uma alegação de conspiração para iludir o público e temperar a história, que ele sabia atrairia os criadores de manchetes.
A BBC tampouco pode lavar as mãos de sua responsabilidade, porque recrutou e encorajou Gilligan a criar uma agenda noticiosa, em lugar de noticiar os fatos.
Um inquérito judicial é necessário tanto em relação à justificação da guerra no Iraque quanto à morte do doutor Kelly. Mas o Reino Unido também merece uma cultura política mais respeitosa e um padrão mais maduro de jornalismo político.


Robin Cook, 57, é membro do Parlamento pelo Partido Trabalhista. Foi ministro das Relações Exteriores durante o primeiro mandato de Tony Blair (1997-2001) e líder do governo no Parlamento de 2001 a 2003. Renunciou ao cargo em março por discordar da participação do Reino Unido na Guerra do Iraque.


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