São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

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GUERRA ÀS DROGAS
Por US$ 0,16 compra-se um punhado de folhas nas ruas de qualquer cidade; tradição vem dos incas
Bolívia mantém o mercado legal para a folha de coca

DO ENVIADO ESPECIAL À BOLÍVIA

Para os desavisados, pode parecer estranho que a Bolívia faça um esforço tão grande para tentar erradicar suas plantações ilegais de coca e permita, ao mesmo tempo, a existência de um comércio totalmente legal da folha em todo o país. Em qualquer cidade boliviana, compra-se na rua, pelo equivalente a cerca de US$ 0,16, um saquinho com um punhado de folhas, que podem ser mascadas ou usadas para fazer chá.
Isso porque, ao contrário do que acontece na maior parte dos países, inclusive no Brasil, a folha de coca não é ilícita na Bolívia, por conta da tradição do seu uso pela população indígena, que ainda hoje é a maioria da população local. Satanizada pela cultura moderna como a matéria-prima da cocaína, a folha de coca tem uma imagem oposta na cultura indígena da região andina.
É considerada uma planta sagrada, presente dos deuses aos antepassados incas centenas de anos antes da chegada dos espanhóis à região.
O principal uso tradicional da coca é o chamado "pijcheo" ou "acullico" (o ato de mascar). A folha também é usada para infusões, cujo consumo é indicado, entre outras coisas, para o "sorojche" (mal de altura), mal-estar sentido por pessoas não acostumadas à altitude das cidades do altiplano andino.
Para abastecer o mercado legal, a lei boliviana permite o cultivo de 12 mil hectares de coca, somente na região dos Yungas, no Departamento (Estado) de La Paz.
A folha de coca também é industrializada na Bolívia para a fabricação de chá e de outros produtos medicinais e alimentícios.
"Lamentavelmente, o governo prefere apostar na erradicação a impulsionar a industrialização da coca para usos legais", afirma Edgar Barco, responsável médico da empresa Coincoca, que produz xaropes, pastas de dente, xampus, cremes, vinhos, biscoitos e até chicletes a partir da folha de coca.
"Todos sabemos que a coca não é cocaína", afirma Barco. "Nas áreas rurais, o "acullico" é o alimento básico da população, mas ninguém lá é dependente nem apresenta alterações de comportamento ou alterações genéticas nos descendentes", diz.
Para ele, é um "desperdício" erradicar uma planta como a coca, que "serve como alimento e traz benefícios medicinais".
Tommy Hegedus, gerente da fabrica de chás Windsor, em La Paz, também lamenta a falta de incentivo ao mercado legal da coca. "Teríamos condições de fabricar uma grande quantidade de chá de coca se fosse possível vender ao mercado externo", afirma.
Cada bolsinha de chá produzido pela Windsor tem, segundo ele, 1 g de folhas de coca. Para fabricar 1 kg de cocaína seriam necessárias por volta de 1 milhão de bolsinhas como essa.
A venda de produtos à base de coca em outros países, porém, é proibida. Proibição sem sentido, na avaliação de Elisaldo Carlini, diretor do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas) e ex-secretário nacional de Vigilância Sanitária.
"Considero essa proibição um tremendo exagero. A quantidade de cocaína presente num chá ou num xarope para tosse à base de coca é próxima ao traço", afirma Carlini. "Quem toma um chá ou masca um chiclete de coca não terá nenhum efeito psicotrópico. Esse tipo de uso é bem diferente do abuso do uso de drogas", diz.
(ROGERIO WASSERMANN)


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