São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GUERRA ÀS DROGAS
Para estudioso, mercado legal para a coca pode absorver produção e criar alternativas ao narcotráfico
Histeria confunde bolsinha de chá com droga, diz analista

DO ENVIADO ESPECIAL À BOLÍVIA

A criação de um mercado legal para produtos à base de coca poderia absorver os cultivos hoje ilegais usados pelo narcotráfico. A afirmação é de Roberto Laserna, considerado um dos maiores especialistas acadêmicos no tema.
Professor da Universidade San Simón, de Cochabamba, e diretor do Ceres (Centro de Estudos da Realidade Econômica e Social), Laserna defendeu sua tese de doutorado sobre o cultivo da coca na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Leia a seguir trechos da entrevista concedida por Laserna à Folha em Cochabamba:
(ROGERIO WASSERMANN)

Folha - Por que os camponeses resistem tanto à erradicação da coca e aos cultivos alternativos?
Laserna -
Um dos argumentos é o da tradição. Sempre foi um cultivo tradicional e legal até que veio uma força externa para dizer que aquilo era ilegal.
Além disso, a coca é uma planta que dura mais de 15 anos e dá várias colheitas ao ano. E a colheita pode ser guardada por um longo período, ao contrário de outros produtos, como a banana ou o abacaxi. A coca tem um alto valor por peso, então o camponês pode levar nas costas um valor que, em frutas, necessitaria de uma camionete para transportar.
Uma grande parte da política antidrogas se concentrou na idéia de que a coca é um produto rentável e que deve ser substituído por outro produto mais rentável. Eu acho que a rentabilidade não é um tema que entre no cálculo do camponês. O que entra é a segurança, o pouco risco e o fluxo de dinheiro. A coca é como uma apólice de seguro.

Folha - Mas a segurança que eles têm com a coca não vem da possibilidade de vendê-la ao narcotráfico?
Laserna -
A coca sempre teve um grande mercado, porque é um produto que tem muitos usos. Quando veio o narcotráfico, com uma demanda adicional, estimulou o mercado, mas o rol de utilizações da planta na comunidade camponesa já existia antes e continuará existindo. Claro que o narcotráfico deve ser o mercado mais interessante para eles hoje, mas sempre foi fácil para um produtor de coca vender a produção.

Folha - Qual seria a solução para esse problema?
Laserna -
Considerando os múltiplos usos da coca, o mais lógico seria tratar de criar uma demanda legal que pudesse competir com a demanda ilegal, para oferecer aos camponeses uma alternativa. Mas não se fez isso. Não houve um único projeto de investigação para verificar a industrialização e o uso alternativo da coca.
Se o chá de coca conseguisse 5% do mercado mundial de chá, seria suficiente para absorver toda a produção de coca do Chapare e a metade da coca peruana.

Folha - Que outros usos poderia ter a coca?
Laserna -
Vitaminas podem ser extraídas da coca, mas não houve estudos sistemáticos sobre isso. Eu diria, inclusive, que os estudos foram inibidos, porque a idéia é: temos de erradicar a coca e ponto.

Folha - Mas os outros países proíbem a entrada desses produtos...
Laserna -
Sim, é proibido, mas é algo que poderia ter sido negociado em algum momento. Poderia ter sido feito um acordo internacional para não levar a histeria da coca e da droga a uma bolsinha de chá, que é absolutamente inofensiva. Estamos vivendo a consequência de uma política maniqueísta. Não houve inteligência para ver a maneira de expandir o consumo legal da coca para aproveitar um cultivo que tem tantas vantagens econômicas. Só dizem: temos de acabar com a coca porque é a base da cocaína.

Folha - O governo argumenta que o Plano Dignidade ajudou a melhorar o conceito do país. Isso influencia a opinião pública?
Laserna -
Isso pode ter consequências para a minoria branca que viaja com frequência ao estrangeiro e que era antes objeto de humilhação. Mas quantos bolivianos fazem isso? Uma minoria.

Folha - Os programas de cultivos alternativos estão funcionando?
Laserna -
As propostas de desenvolvimento alternativo não se consolidaram. Não há substitutos econômicos para a coca. Há pequenos êxitos em alguns produtos, mas não é o suficiente.



Texto Anterior: Bolívia mantém o mercado legal para a folha de coca
Próximo Texto: Deputado lidera mobilizações pró-coca
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.