São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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"Aqui se levantaram as serpentes de todos os ninhos"

DO ENVIADO ESPECIAL A CARACAS

Pergunta - Supondo que esses 30% sejam uma aproximação à realidade, não mostram uma queda significativa em relação aos votos que o sr. obteve nas últimas eleições? O que ocorreu para o sr. ter perdido essa parte de seu capital político?
Chávez -
Vocês sabem que o exercício do poder desgasta e mais ainda quando o povo, ao ligar a televisão, vê, desde o amanhecer até o anoitecer, uma campanha bestial contra uma pessoa. Apesar disso, tomando como verdade essas pesquisas que me dão 30%, ainda estou na frente, depois de quatro anos de governo.

Pergunta - Em abril, como estavam essas pesquisas?
Chávez -
Um dia antes do golpe, as pesquisas diziam que eu tinha 40% de popularidade. Depois eu cheguei a 50%. Tenho uma percepção de que o apoio popular tem crescido.

Pergunta - Por que a oposição, a seu ver, tem essa pressa em adiantar as datas e afastá-lo do poder?
Chávez -
O fundo da questão é que aqui está em marcha um projeto transformador, que começamos a aplicar. Um projeto de revolução democrática, no âmbito político, no econômico, no social. Trata-se de mudar um modelo econômico selvagem que converteu este país em um país rico habitado por um povo pobre e uma minoria privilegiada.
Isso temos de mudar, não só na Venezuela, mas em toda a América Latina. Não é viável o modelo que está em marcha na América Latina. Foi aplicado, durante um século ou mais, um modelo excludente, selvagem, que nos levou a um abismo: é o continente com maior grau de desigualdade. E a pobreza está crescendo.
É um projeto transformador que começa a tocar os interesses dos setores privilegiados historicamente: os grandes proprietários de terras, os grandes possuidores do capital especulativo e financeiro, empresários que viveram ao amparo da violação de leis e não pagavam impostos.
Quando um projeto toca os interesses da oligarquia da mídia, por exemplo, ela reage como serpente. E aqui se levantaram as serpentes de todos os ninhos.

Pergunta - Mas, em um dado momento, donos de meios de comunicação o apoiaram. O que pode tê-los levado a estar contra o sr.?
Chávez -
Todos estiveram contra, não é certo que me apoiaram. Ao final, quando não podiam mais maquiar as pesquisas, começaram a aceitar a realidade e a tratar de rodear-me. Um deles chegou a escrever que "há exemplos na história de que se pode amansar o bicho". Mas este bicho [aponta para si mesmo" não se deixa amansar.
Eles me estenderam um tapete vermelho e pensaram que eu fosse engrossar a lista dos traidores do povo. Então, depois de várias tentativas de voltar a apoderar-se do Estado, para continuar gozando de privilégios, se deram conta de que comigo não poderiam cumprir seu propósito. Houve tentativas de adular o presidente, enquanto, por baixo da mesa, faziam propostas indecorosas...

Pergunta - Por exemplo?
Chávez -
Temos um organismo que se chama Conatel (Conselho Nacional de Telecomunicações). Os donos das televisões se acostumaram a ter sempre um homem deles lá. Para quê? Para não pagar impostos. Para violar descaradamente as leis, para desrespeitar os horários infantis. Agora, não. Se violam o horário infantil, há processo e multa. Eles têm de pagar os impostos, que são bilhões de bolívares, porque ganham muito.

Pergunta - O sr. tentou abrir a caixa-preta que há na PDVSA?
Chávez -
Fizemos várias tentativas. Conseguimos algumas pequenas mudanças. Mas essa tecnoburocracia que se foi consolidando desenvolveu uma grande capacidade de manobra, de ocultação de cifras e da realidade.
Não obstante, no ano passado removi a direção e nomeei uma diretoria nova, composta por verdadeiros patriotas, que começaram a descobrir coisas, a remover gerentes, a revisar contas no exterior. Então, começaram a falar de uma greve petrolífera e ativaram a greve em abril, junto com o golpe.
Parte dessa tecnocracia petrolífera tem conexões no estrangeiro e mantém a idéia de privatizar a PDVSA, a galinha dos ovos de ouro. Estava pronto o plano para privatizar. Esse é o tema de fundo.

Pergunta - Há indicações de interesse de firmas espanholas e norte-americanas na privatização. O sr. acha que esse fato possa influir nas posições desses países sobre o sr.?
Chávez -
Seria leviandade dizer algo. Não tenho prova de que esses governos estejam impulsionando todas essas medidas contra a Venezuela. Apesar de não poder dizer algo tão sério, temos muitas provas de que esses problemas têm conexões internacionais.

Pergunta - Está claro para o sr. o papel dos EUA em abril?
Chávez -
Às vezes é difícil para nós, na América Latina, decifrarmos totalmente o jogo e os atores que se movem em Washington. O menos que posso dizer é que os EUA erraram de maneira aberta e grave durante os fatos de abril.
No dia do golpe, havia dois militares da embaixada dos EUA conversando com os militares golpistas. Depois, explicaram que estavam ali para buscar informação.
Depois, fizeram declarações louvando na prática o governo de facto e desconhecendo a legitimidade de meu governo. Claro que, 48 horas depois, trataram de recompor tudo e emitiram alguns comunicados, mas não ficou nada claro o papel dos EUA.

Pergunta - Na economia, há recessão, o desemprego é cada vez mais elevado e, pelo menos pelo que dizem os estudos da Universidade Católica Andrés Bello, a pobreza é hoje maior do que há três anos. Alguma coisa não saiu bem na área socioeconômica, não?
Chávez -
Vou citar dados não de centros suspeitos, mas do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e seus informes dos últimos dois anos.
A mortalidade infantil estava em 21 por mil. Hoje, está em torno de 17 por mil. O índice de baixo peso ao nascer estava em 9% em 1998 e, em 2001, fechou em 6%.
A mortalidade materno-infantil reduziu-se em mais de 15%. A desnutrição infantil, em mais de 11%. E a matrícula escolar subiu mais de 35%, são mais de 1,6 milhão, em uma população de 23 milhões. Mais de 2 milhões de pessoas que não tinham água potável há três anos hoje a têm.
Criamos o Banco do Povo, que deu milhares de microcréditos aos pobres que nunca tiveram crédito. Créditos a juros baixos, até sem juros.
Está funcionando há um ano em todo o país o Banco das Mulheres, para dar crédito às mulheres pobres, a um ritmo de dois microcréditos a cada meia hora.
Para quê? Para fazer tortas, para vender comida, para fazer roupa, para uma maquininha para fazer bolsas. Aos camponeses, entregamos milhares de títulos de propriedade, mas não só a terra. O que faz um camponês com dez hectares de terra, se não tem um centavo para produzir?
É totalmente falso que a pobreza tenha aumentado, que o desemprego tenha aumentado. Você acredita que, depois de três anos, quase quatro, se esse povo pobre, que é lamentavelmente a grande maioria dos venezuelanos, não tivesse sentido algum alívio na sua penúria, sairia a dar suas vidas, como saíram, só para trazer-me de volta ao Palácio de Miraflores, após o golpe? Que explicação lógica você pode dar a isso? Um amor cego? Amor com fome não dura.

Pergunta - O que sr. espera do governo Lula?
Chávez -
Minha expectativa, e não creio que me decepcionarei, é que o governo de Lula se insira numa nova onda na América Latina. Creio que os povos da América Latina estejam procurando a si próprios e, nesse procurar, estão surgindo novos líderes. Lula surge como presidente com a bandeira de acelerar o processo de transformação, não só no Brasil. O mesmo podemos dizer do triunfo de Lucio Gutiérrez no Equador. São expressões de um fenômeno que vai se estender. Logo veremos o que vai acontecer na Argentina e depois no Uruguai.

Pergunta - O sr. tem em mente alguma ação imediata para resolver essa paralisação da PDVSA?
Chávez -
Estamos tomando medidas. Apesar de a oposição, que dominava a empresa quase em 100%, ter desestabilizado a companhia, não conseguiram paralisá-la. Provocaram grandes prejuízos, mas estamos em pé. Todos os dias recuperamos espaço.

Pergunta - E o abastecimento de gasolina?
Chávez -
Apesar de terem feito sabotagem inclusive com os caminhões-tanque, estamos conseguindo abastecer o país com as reservas. Claro que estamos dando prioridades a alguns setores que estão relacionados com o funcionamento da economia do país e com os serviços públicos. Ativamos mecanismos de emergência para importar combustíveis.

Pergunta - É verdade que os salários de alguns executivos que estão em greve chegam a US$ 30 mil?
Chávez -
Não sei se é tanto assim. Mas os salários de gerentes que estão em greve, e que começaram a ser demitidos, são astronômicos. Cerca de 15 milhões de bolívares [US$ 12 mil" por mês.

Pergunta - Quanto ganha o presidente da Venezuela?
Chávez -
Oitocentos mil bolívares (US$ 640) e é suficiente. Além disso, parte vai como ajuda para crianças pobres.

Pergunta - O sr. teme ser morto?
Chávez -
Aqui tem gente da oposição tão enlouquecida que chegaram a dizer publicamente que a solução seria matar o presidente. Descobrimos vários planos nesse sentido. Um deles, recentemente, quando regressava da Europa previa o disparo de um foguete no avião presidencial. Mas descobrimos a tempo e decidimos pousar em outro local. Quando fiquei preso no dia do golpe, deram a ordem para a minha execução.

Pergunta - Por que não obedeceram?
Chávez -
Naquele dia, consegui falar, por celular, com minha mulher e minha filha e lhes disse que me matariam. Uma falou com a CNN, porque os meios de comunicação aqui se negaram a veicular. Minha filha ligou para Fidel Castro. De Havana saiu para o mundo e para a Venezuela o risco que eu corria. Isso gerou movimentos populares que permitiram garantir a minha vida. Aí os militares que me custodiavam se negaram a obedecer a ordem. Hoje me cuido mais do que antes. Mas não tenho temor.

Pergunta - Até quando a Venezuela aguentará a crise?
Chávez -
Essa oposição desesperada está jogando as suas cartas. Assim fizeram em abril com os militares, mas fracassaram. Sete meses depois estão jogando outra carta, a PDVSA. Mas vamos derrotá-los. Espero que essa oposição reflita e retome o caminho democrático. Há setores que querem conversar. (CLÓVIS ROSSI)


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