São Paulo, sexta-feira, 23 de fevereiro de 2001

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Abuso sexual marcou várias guerras

MÁRCIA DETONI
DA REDAÇÃO

O veredicto do tribunal de crimes de guerra em Haia de que estupro e escravidão sexual são crimes contra a humanidade foi considerado uma vitória para os grupos que lutam pelos direitos da mulher.
"Ele muda a percepção de que o estupro é intrínseco à guerra", disse à Folha, por telefone, Heeleen Habraken, pesquisadora da Anistia Internacional em Londres. "Esperamos que esse veredicto reforce a mensagem de que crimes sexuais não podem ser considerados normais em uma guerra", acrescentou.
A guerra na antiga Iugoslávia trouxe à tona uma questão que sempre foi subestimada e varrida para baixo do tapete por políticos, militares e historiadores: o estupro como estratégia para aterrorizar e humilhar o inimigo, evidenciando a incapacidade de pais, maridos, irmãos e filhos de defender suas mulheres.
O estupro foi tática de terror dos alemães que marcharam sobre a Bélgica na Primeira Guerra. Foi usado contra as judias na Noite dos Cristais (1938), que marcou o início da campanha nazista contra os judeus na Alemanha. Foi arma de vingança de soldados russos, que violentaram milhares de mulheres quando tomaram Berlim na Segunda Guerra. Foi usado, na mesma guerra, como método de "conforto" pelos japoneses, que se negam até hoje a reconhecer os crimes sexuais cometidos contra as asiáticas.
Os norte-americanos também usaram o estupro na Guerra do Vietnã para obter a submissão da população, e centenas de mulheres foram violentadas em guerras na África. Mas em nenhum desses casos os crimes sexuais receberam tanta publicidade quanto os cometidos na antiga Iugoslávia.
"As coisas mudaram", disse à Folha Ariane Brunet, do Centro Internacional para os Direitos Humanos e Desenvolvimento Democrático, com sede em Quebec, no Canadá.
"Antes, as mulheres eram oprimidas e não se defendiam. Ninguém falava de crimes sexuais na guerra como um problema. Mas alguns grupos de direitos humanos e de defesa das mulheres começaram a lutar contra esse tipo de coisa", disse ela.
A Anistia e o Centro Internacional para os Direitos Humanos fizeram uma grande campanha para que a violência sexual fosse incluída no julgamento dos abusos cometidos em Ruanda, em 1994, durante o genocídio de tutsis, e vêm lutando desde o final da guerra da Bósnia para que os culpados por crimes sexuais fossem levados à julgamento.
"Temos pressionado a Otan e as forças internacionais na Bósnia, lembrando que é mandato delas prender os indiciados pelo tribunal de crimes de guerra. Só três foram trazidos para a Justiça. Há mais casos que precisam ser julgados", disse Habraken.
Um fato muito importante, segundo Brunet, é que, finalmente, os crimes sexuais estão começando a ser vistos como tortura física e psicológica. "O estupro como estratégia de guerra sempre existiu, mas nunca foi visto como um crime contra a mulher. Era visto como um crime contra a comunidade, um crime para desonrar o inimigo", disse ela.
Brunet lembra que a Convenção de Genebra, adotada em 1949 para proteger as vítimas de conflitos, cita o estupro como crime de guerra, mas o menciona simplesmente como uma desonra. "Mas desonra contra quem? Contra as mulheres ou contra os homens que as possuem? Isso nunca foi esclarecido", lamentou Brunet, ressaltando que a grande vítima do estupro é a mulher e não os homens ligados a ela.


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