São Paulo, terça-feira, 23 de abril de 2002

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COMENTÁRIO

Votação reflete desencanto com o establishment

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

A França não despertou ontem mais extremista do que era na última sexta-feira apesar de Jean-Marie Le Pen, líder da maior formação de extrema direita do país, a Frente Nacional (FN), ter conseguido chegar ao segundo turno da eleição presidencial anteontem.
Entretanto, além dos quase 17% de Le Pen e dos cerca de 2,5% de Bruno Mégret (ex-mentor intelectual da FN), a extrema esquerda conseguiu atrair quase 10,5% do eleitorado. Assim, somadas, as "extremas" chegaram perto dos 30% dos votos válidos.
Em relação à votação alcançada por Le Pen, que no último pleito presidencial já tinha conquistado 15% dos votos válidos no primeiro turno, cabe uma ressalva. Desta vez, ele obteve só cerca de 230 mil votos a mais do que em 1995 -num universo de quase 40 milhões de eleitores. Assim, seu expressivo avanço percentual se deu por conta do aumento do índice de abstenção, que chegou a 28,4% anteontem (21,6% em 1995).
Todavia isso não explica a debacle dos partidos tradicionais franceses. Afinal, o presidente Jacques Chirac, que enfrentará Le Pen no segundo turno, e o premiê Lionel Jospin, o maior perdedor do primeiro turno, não chegam juntos a 40% dos votos válidos, o que denota o desencanto dos eleitores em relação ao establishment.
"Há vários fatores que explicam o ocorrido. Primeiro, como os principais candidatos vinham de cinco anos de coabitação bastante pacífica, todos pensaram que eles iriam enfrentar-se no segundo turno, o que causou certa desmobilização dos eleitores", apontou Jean Chiche, do Centro de Estudo da Vida Política Francesa.
"Segundo, há a crise de identidade dos dois maiores partidos, o Partido Socialista [de Jospin" e a Reunião pela República [de Chirac". Isso acarretou o aparecimento de diversos candidatos de esquerda e de direita, que "roubaram" votos das formações tradicionais. Terceiro, durante a campanha, Chirac insistiu na questão da insegurança. Ora, esse é o tema preferido da extrema direita há décadas", acrescentou.
Com efeito, a coabitação (situação em que o presidente é de um partido e o premiê, de outro), que existiu pela primeira vez em 1986, parece ter confundido o eleitorado desde 1997, quando Jospin assumiu o posto de premiê. Como ambos atravessaram calmamente os últimos cinco anos, muitos franceses passaram a não ver grande diferença entre eles.
Ademais, segundo os analistas ouvidos pela Folha, a campanha de Jospin foi desastrosa. "O premiê não conseguiu definir que linha privilegiaria durante a campanha. Só enfatizou seu discurso de esquerda no fim, quando viu que estava em perigo", disse Anne-Marie Le Gloannec, diretora do Centro Marc Bloch, um instituto de pesquisas franco-alemão.
Além disso, todas as acusações de corrupção que pesam sobre Chirac também contribuíram para uma forte rejeição do establishment. "Muitos eleitores vêem os políticos como uma classe à parte, sem verdadeiro vínculo com a sociedade", explicou Chiche. Isso, para ele, explica em parte o alto índice de abstenção.
Talvez ainda mais preocupante seja o fato de que Chirac -que deverá vencer o segundo turno- só obteve os votos de cerca de 14% do eleitorado total. Assim, se o centro-direita não conquistar uma vitória clara na eleição legislativa (assegurando o posto de premiê), as instituições estarão em risco. "Se houver uma nova coabitação, a Quinta República será posta em xeque. Afinal, os franceses estão cansados desse sistema em que ninguém sabe quem manda", analisou Chiche.



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