São Paulo, sexta-feira, 23 de julho de 2010

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ANÁLISE AMÉRICA LATINA

Tensão escancara 2 projetos messiânicos

Eliminação do narcoterrorismo por Uribe e "socialismo do século 21" de Chávez estão por trás de conflito atual


NADA COMO UM INIMIGO EXTERNO PARA ESQUECER QUE A VENEZUELA SERÁ A ÚNICA ECONOMIA A RETROCEDER EM 2010

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

O rompimento de relações entre Venezuela e Colômbia parece a materialização diplomática de um choque entre dois projetos messiânicos, o do presidente colombiano, Álvaro Uribe, e o de seu colega venezuelano, Hugo Chávez.
O projeto de Uribe passava acima de tudo pela aniquilação do narcoterrorismo, em especial o das Farc, com o pleno respaldo dos EUA.
Em seus oito anos de governo, Uribe deu grandes passos nessa direção, mas não conseguiu completá-lo.
No percurso, chocou uma e outra vez com a Venezuela de Chávez, cujo projeto, bem mais trombeteado internacionalmente, é o "socialismo do século 21".
Passa, inexoravelmente, por enfrentar cotidianamente o "império", os Estados Unidos da América, o grande respaldo de Uribe.
Na prática, um precisa do outro, como contraponto, para ganhar ou reforçar internamente os respectivos projetos.

PROVAS ANTIGAS
Essa necessidade explica o rompimento de relações.
Por que Uribe apresentou o que considera provas da presença de líderes das Farc em território venezuelano a apenas três semanas de deixar o cargo? Afinal, algumas das provas são antigas, até dos anos 1990.
Há duas respostas: a primeira está em artigo de Carlos Romero, cientista político venezuelano para a revista da Fundação Friedrich Ebbert, da social-democracia alemã: o novo governo colombiano, de Juan Manuel Santos, embora delfim de Uribe, "procurará restabelecer um clima favorável às relações bilateral [com a Venezuela] e regional, a promover a segurança fronteiriça e a restabelecer o intercâmbio comercial".
Se é assim e se Uribe acredita, como o demonstra sempre, que tem a absoluta convicção de que a Venezuela é um santuário para as Farc, o projeto de aniquilá-las ficaria debilitado.

CAMINHO LIMPO
Segunda resposta, em artigo da também venezuelana Maria Teresa Romero para o jornal "El Universal": a divulgação das provas agora não é para torpedear Santos, mas, ao contrário, para "deixar a Santos o caminho mais limpo possível para que este possa iniciar a Presidência com bom pé".
Posto de outra forma, Uribe confiaria em que seu projeto seria levado adiante por Santos, que, afinal, foi o principal líder do implacável combate às Farc.
Do lado de Chávez, interessa acentuar agora o clima belicista em relação a Uribe para tentar tapar a coleção de problemas internos, ainda mais na antevéspera das eleições legislativas que são fundamentais para o projeto do presidente.

SÓ MELHOR QUE O HAITI
Nada como um inimigo externo para tentar fazer esquecer que a Venezuela será neste ano, segundo a Cepal, o único país latino-americano a retroceder economicamente (3%), fora o Haiti, claro.
No ano passado, já houvera uma retração até maior (-3,3%).
Some-se uma inflação recorde na região e tem-se em tese o pior cenário para um governo enfrentar uma votação, qualquer que ela seja.
Jogos de cena à parte, permanece a necessidade de esclarecer a relação entre a Venezuela e as Farc.
Pelo que a Folha ouviu de delegados na reunião de ontem da OEA, nem as provas apresentadas pela Colômbia são contundentes nem a defesa do embaixador venezuelano as destrói.
O mais razoável é supor que Chávez vai esperar a posse de Santos, no dia 7, e algum sinal, por mínimo que seja, do novo presidente para deixar claro que o rompimento de ontem é com Uribe, não com a Colômbia.
Como Santos tem todo o interesse em recuperar o fluxo comercial (que caiu de US$ 6,514 bilhões em 2008 para apenas US$ 2,6 bilhões em 2009, por conta das restrições impostas por Chávez), há espaço para estacionar o messianismo em nome dos negócios.


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