São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CATÁSTROFE HUMANITÁRIA
Organização budista contesta relatos de que abastecimento de comida no país está melhorando
Fome leva norte-coreanos para a China

RICHARD LLOYD PARRY
do "The Independent", em Seul

Numa tarde chuvosa de junho, próximo à cidade chinesa de Changbai, um grupo de viajantes encontrou uma mulher morrendo de fome. Ela estava acompanhada de duas mulheres e duas crianças, todas refugiadas da Coréia do Norte, situada a poucos quilômetros, do outro lado do rio Yalu.
A mulher não comia direito havia semanas. Suas pernas estavam esqueléticas. Seu seios tinham sumido e um tumor rosa despontava em sua nuca. Parecia ser de meia-idade, mas disse ter 30 anos.
"Essa mulher doente perdeu a mãe, o pai, o marido e duas crianças", disse o monge budista sul-coreano Pomnyun, um dos viajantes que a encontrou.
O diário do monge, que pertence ao Movimento Budista Coreano de Compartilhamento (MBCC), denuncia a tragédia da fome norte-coreana. "Uma incrível tragédia está acontecendo na Coréia do Norte. Milhões já morreram por falta de comida. Eles estão morrendo em silêncio. Temos de acabar com isso de qualquer maneira", escreveu Pomnyun.
Apesar do trabalho dessa organização, há quem negue a existência de vítimas da fome como aquela jovem. Uma comissão da União Européia visitou a Coréia do Norte em maio e não relatou nenhum sinal de fome.
O grupo humanitário Médicos do Mundo, que afirma ter ido ao país no mês passado, diz que seus integrantes "não sentiram que haja uma total catástrofe".
A Coréia do Norte sempre foi um país misterioso. De um lado, há grupos que vêem a situação como difícil, mas não crítica. Do outro, associações como a dos budistas sul-coreanos acreditam que o país vive uma tragédia de proporções inimagináveis, acobertada pelo governo comunista e ignorada no exterior.
Desde que o quadro de falta de alimentos se agravou, em 1995, muitos estrangeiros tiveram permissão de visitar a Coréia do Norte a até de viver em Pyongyang. Mas sua liberdade de movimento é controlada.
O grupo humanitário World Vision estima que entre 500 mil e 2 milhões de pessoas tenham morrido entre janeiro e agosto do ano passado. Na semana passada, uma delegação do Congresso dos EUA voltou da Coréia do Norte apresentando cálculos que diziam que entre 300 mil e 800 mil morreram por ano, vítimas da crise, desde 95.
Impedida de atuar dentro das fronteiras do regime comunista, a organização do monge budista escolheu o melhor lugar fora do país -a área de fronteira com a China, local que sempre teve o mais próximo contato com os mistérios do país vizinho.
Desde setembro de 97, o MBCC mantém uma equipe de pesquisadores na região, que já entrevistou cerca de 1.500 refugiados norte-coreanos que conseguiram atravessar clandestinamente a fronteira e chegar a solo chinês.
As conclusões do MBCC revelam um quadro horrível de um país que sistematicamente desistiu de alimentar sua própria população. Desde 1992, o sistema coletivo de distribuição de alimentos parece ter falido. Á exceção de esporádicas distribuições de arroz, as famílias tinham de se virar sozinhas. Cerca de 40% dos refugiados disseram ter comido raízes ou a casca de árvores. Escolas e hospitais não têm combustível nem medicamentos adequados.
Aqueles que conseguem chegar à China ainda têm o desafio de despistar os controles de fronteira. Muitos morrem afogados na travessia a nado. Outros são levados pelas tropas chinesas de volta à Coréia do Norte, onde são mandados para campos de detenção.


Tradução de Marcelo Starobinas


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.