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ANÁLISE
Bush encontrou um meio de infundir a história de sua Presidência com um sentido de missão, algo
tão grandioso quanto a libertação da Ásia e da Europa
Bush quer ser o libertador do Oriente Médio
DAVID SANGER
DO "NEW YORK TIMES"
Nestas duas últimas e frenéticas
semanas da campanha eleitoral,
chega um momento em cada comício, em cada cidade, em que o
presidente Bush começa a falar
sobre o que chama de "o poder de
transformação da liberdade".
Isso geralmente acontece perto
do final de seu discurso, depois de
Bush acusar o senador John Kerry
de querer bater em retirada apressada do Iraque e de abrir mão da
soberania americana. Quase sempre começa com Bush descrevendo sua relação calorosa com o
premiê do Japão, Junichiro Koizumi, e seu sentimento de espanto feliz por sentar-se "à mesa com
o chefe de Estado de um antigo
inimigo" que seu pai combateu
na Segunda Guerra.
Mas o discurso passa rapidamente para a visão de um Afeganistão e um Iraque democráticos
e, em seguida, para ""governos livres no Oriente Médio, governos
que, em lugar de abrigar terroristas, irão combatê-los". É a maneira que Bush encontrou de infundir a história de sua Presidência
com um sentido de missão, algo
tão grandioso quanto a libertação
da Ásia e da Europa, meio século
atrás, e que contém a promessa de
transformar a região naquilo que
o Japão se tornou: uma região rica, pacífica e dotada de sua forma
própria de democracia.
É um símbolo brilhante daquilo
que, há 12 anos, fez falta ao pai do
atual presidente, com efeitos eleitorais desastrosos. É o momento
enaltecedor da mensagem presidencial diária, redigido de modo a
fazer com que o público olhe para
mais além das manchetes diárias
sobre decapitações e atentados
suicidas, além da insurgência que
vem desafiando o poderio militar
americano, de modo a focalizar a
atenção dos americanos no fato
de que os afegães acabaram de ir
às urnas e que os iraquianos estão
tentando fazer o mesmo.
"A liberdade está em marcha",
declarou Bush quando começou a
descrever a missão americana de
difundir a democracia e liberdade, uma visão que,
há poucos anos,
era de apenas alguns poucos neoconservadores liderados pelo vice-secretário da Defesa, Paul Wolfowitz. O argumento
foi contagiando
entusiastas na administração, que
foram apresentando argumentos
em favor da derrubada de Saddam
Hussein. "A liberdade está deitando
raízes em uma
parte do mundo
que ninguém, jamais, sonhou que
pudesse ser livre",
disse Bush, "e isso
faz a América ser mais segura."
Kerry e muitos outros críticos
do presidente afirmam que a maneira como Bush defende a democratização liderada pelos EUA
-repleta de referências calorosas
a Harry Truman, o presidente que
iniciou a reconstrução da Europa
e do Japão- representa pouco
mais do que uma justificação a
posteriori da guerra.
Eles observam que, antes de invadir o Iraque, Bush fez apenas
um discurso importante em que
mencionou a democratização do
Oriente Médio, embora falasse
quase diariamente sobre a ameaça das armas de destruição em
massa. Hoje o tema faz parte de
sua mensagem diária aos eleitores
na campanha.
Os críticos alegam que o discurso de Bush passa por cima de todos os erros cometidos nos últimos 18 meses, erros esses que dificultaram a tarefa dos reformadores na região.
E ele certamente é irritante para qualquer um
que, durante a
campanha de
2000, tenha ouvido Bush argumentar que era
hora de tirar as
Forças Armadas americanas
do ramo da
construção de
nações -apenas para concorrer à reeleição, em 2004,
como defensor
apaixonado do
uso do poderio
americano para
remodelar um dos cantos menos
democráticos do mundo.
No entanto a visão de Bush parece encontrar eco entre as multidões entusiasmadas que saem às
ruas para ouvi-lo. E, quando
Kerry menciona o mesmo assunto, geralmente o faz para rejeitar a
abordagem do presidente. "Vou
apoiar as forças do progresso em
países não-democráticos", disse
Kerry, "não com campanhas impensadas para impor a democracia à força, de fora para dentro,
mas trabalhando com as forças
modernizadores nacionais, de
dentro para fora."
Nos raros momentos em que foi
indagado sobre isso, Bush nunca
respondeu à pergunta de como
reagiria se o Iraque, o Afeganistão
ou outros países do Oriente Médio promovessem eleições livres
-e elegessem governos fundamentalistas islâmicos.
Mas seu diretor de comunicações, Don Bartlett, afirmou outro
dia que "o presidente compreende que parte da democracia é o fato de que não se pode ditar o que
os eleitores vão fazer". "Mas basta
olhar para cada passo dado até
agora para ver que as pessoas vêm
demonstrando não estar inclinadas a seguir esse caminho."
Bartlett insistiu que o discurso
de Bush não é fruto da cabeça de
Wolfowitz ou de qualquer redator
de discursos. "É puro Bush."
Seja qual for a fonte, Bush fala
do "poder de transformação da liberdade" no mesmo tom em que
às vezes fala do poder da religião
de transformar a alma humana.
Aliás, ele freqüentemente vincula
as duas coisas, repetindo uma de
suas frases-padrão: a de que "a liberdade não é o presente da América ao mundo, mas uma dádiva
que Deus Todo-Poderoso".
A eleição vai se configurando
como referendo sobre a abordagem do presidente ao mundo.
Talvez seja a primeira oportunidade desde 1948 para determinar
se o que Truman fez pelo Japão
poderá se traduzir numa época
muito distinta, numa região muito diferente do mundo, e reeleger
um presidente muito diferente.
Tradução de Clara Allain
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