São Paulo, sábado, 23 de outubro de 2004

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ANÁLISE

Bush encontrou um meio de infundir a história de sua Presidência com um sentido de missão, algo tão grandioso quanto a libertação da Ásia e da Europa

Bush quer ser o libertador do Oriente Médio

DAVID SANGER
DO "NEW YORK TIMES"

Nestas duas últimas e frenéticas semanas da campanha eleitoral, chega um momento em cada comício, em cada cidade, em que o presidente Bush começa a falar sobre o que chama de "o poder de transformação da liberdade".
Isso geralmente acontece perto do final de seu discurso, depois de Bush acusar o senador John Kerry de querer bater em retirada apressada do Iraque e de abrir mão da soberania americana. Quase sempre começa com Bush descrevendo sua relação calorosa com o premiê do Japão, Junichiro Koizumi, e seu sentimento de espanto feliz por sentar-se "à mesa com o chefe de Estado de um antigo inimigo" que seu pai combateu na Segunda Guerra.
Mas o discurso passa rapidamente para a visão de um Afeganistão e um Iraque democráticos e, em seguida, para ""governos livres no Oriente Médio, governos que, em lugar de abrigar terroristas, irão combatê-los". É a maneira que Bush encontrou de infundir a história de sua Presidência com um sentido de missão, algo tão grandioso quanto a libertação da Ásia e da Europa, meio século atrás, e que contém a promessa de transformar a região naquilo que o Japão se tornou: uma região rica, pacífica e dotada de sua forma própria de democracia.
É um símbolo brilhante daquilo que, há 12 anos, fez falta ao pai do atual presidente, com efeitos eleitorais desastrosos. É o momento enaltecedor da mensagem presidencial diária, redigido de modo a fazer com que o público olhe para mais além das manchetes diárias sobre decapitações e atentados suicidas, além da insurgência que vem desafiando o poderio militar americano, de modo a focalizar a atenção dos americanos no fato de que os afegães acabaram de ir às urnas e que os iraquianos estão tentando fazer o mesmo.
"A liberdade está em marcha", declarou Bush quando começou a descrever a missão americana de difundir a democracia e liberdade, uma visão que, há poucos anos, era de apenas alguns poucos neoconservadores liderados pelo vice-secretário da Defesa, Paul Wolfowitz. O argumento foi contagiando entusiastas na administração, que foram apresentando argumentos em favor da derrubada de Saddam Hussein. "A liberdade está deitando raízes em uma parte do mundo que ninguém, jamais, sonhou que pudesse ser livre", disse Bush, "e isso faz a América ser mais segura."
Kerry e muitos outros críticos do presidente afirmam que a maneira como Bush defende a democratização liderada pelos EUA -repleta de referências calorosas a Harry Truman, o presidente que iniciou a reconstrução da Europa e do Japão- representa pouco mais do que uma justificação a posteriori da guerra.
Eles observam que, antes de invadir o Iraque, Bush fez apenas um discurso importante em que mencionou a democratização do Oriente Médio, embora falasse quase diariamente sobre a ameaça das armas de destruição em massa. Hoje o tema faz parte de sua mensagem diária aos eleitores na campanha.
Os críticos alegam que o discurso de Bush passa por cima de todos os erros cometidos nos últimos 18 meses, erros esses que dificultaram a tarefa dos reformadores na região. E ele certamente é irritante para qualquer um que, durante a campanha de 2000, tenha ouvido Bush argumentar que era hora de tirar as Forças Armadas americanas do ramo da construção de nações -apenas para concorrer à reeleição, em 2004, como defensor apaixonado do uso do poderio americano para remodelar um dos cantos menos democráticos do mundo.
No entanto a visão de Bush parece encontrar eco entre as multidões entusiasmadas que saem às ruas para ouvi-lo. E, quando Kerry menciona o mesmo assunto, geralmente o faz para rejeitar a abordagem do presidente. "Vou apoiar as forças do progresso em países não-democráticos", disse Kerry, "não com campanhas impensadas para impor a democracia à força, de fora para dentro, mas trabalhando com as forças modernizadores nacionais, de dentro para fora."
Nos raros momentos em que foi indagado sobre isso, Bush nunca respondeu à pergunta de como reagiria se o Iraque, o Afeganistão ou outros países do Oriente Médio promovessem eleições livres -e elegessem governos fundamentalistas islâmicos.
Mas seu diretor de comunicações, Don Bartlett, afirmou outro dia que "o presidente compreende que parte da democracia é o fato de que não se pode ditar o que os eleitores vão fazer". "Mas basta olhar para cada passo dado até agora para ver que as pessoas vêm demonstrando não estar inclinadas a seguir esse caminho."
Bartlett insistiu que o discurso de Bush não é fruto da cabeça de Wolfowitz ou de qualquer redator de discursos. "É puro Bush."
Seja qual for a fonte, Bush fala do "poder de transformação da liberdade" no mesmo tom em que às vezes fala do poder da religião de transformar a alma humana. Aliás, ele freqüentemente vincula as duas coisas, repetindo uma de suas frases-padrão: a de que "a liberdade não é o presente da América ao mundo, mas uma dádiva que Deus Todo-Poderoso".
A eleição vai se configurando como referendo sobre a abordagem do presidente ao mundo. Talvez seja a primeira oportunidade desde 1948 para determinar se o que Truman fez pelo Japão poderá se traduzir numa época muito distinta, numa região muito diferente do mundo, e reeleger um presidente muito diferente.


Tradução de Clara Allain


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