São Paulo, terça-feira, 23 de dezembro de 2008

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ARTIGO

O ano em que Putin viveu perigosamente

NINA L. KHRUSHCHEVA
EM MOSCOU

Na primavera de 2008, as coisas estavam indo às mil maravilhas para o presidente russo Vladimir Putin. Os preços do petróleo e do gás estavam nas alturas, e a receita das exportações inundava os cofres do Kremlin. Poderosas no passado, mas tendo desabado com o fim do comunismo, em 1991, as Forças Armadas estavam sendo reconstruídas. E o sucessor que Putin escolhera a dedo, Dmitri Medvedev, estava se ambientando no poder, enquanto Putin se acostumava a um cargo hierarquicamente inferior, de primeiro-ministro.
Os EUA, além disso, continuavam a agir como realce perfeito para um governante com pretensões de liderança mundial. A política externa incoerente do governo Bush incluía um plano para construir um escudo antimísseis na Polônia e República Tcheca, o que permitia a Putin trazer de volta as divisões entre velha e nova Europa que haviam começado com a Guerra do Iraque -algo que parecia fortalecer a influência russa sobre o continente.
O aparente renascimento militar da Rússia também ajudara a reforçar a economia doméstica. As vendas de armas, que movimentaram perto de US$ 8 bilhões, estavam mais uma vez competindo globalmente com o Reino Unido e os EUA, chegando a quase 80 países, entre eles Venezuela, China, Índia, Argélia, Irã, Malásia e Sérvia. Essas vendas em muitos casos estavam estreitamente vinculadas à assertividade de Putin no âmbito externo; pela primeira vez, o Exército russo estava treinando e promovendo exercícios militares em muitos lugares, incluindo a Venezuela, como se se preparasse para outra crise dos mísseis cubanos, só que com Hugo Chávez assumindo o papel que fora antes de Fidel Castro.

Soft power
Tão bem as coisas pareciam estar indo que a Rússia de repente descobriu, talvez pela primeira vez desde os primórdios da era soviética, que o país de fato possuía algum "soft power" (poder de influência e persuasão). Isso ficou aparente quando o Comitê Olímpico Internacional escolheu Sochi, no mar Negro, para sediar as Olimpíadas de Inverno de 2014. Em 2007, Putin fizera um discurso (em inglês) diante do comitê e argumentara persuasivamente que as Olimpíadas "vão exercer um papel importante no futuro da Rússia. Vão ajudar a transição da Rússia, como democracia jovem."
Em maio de 2008 a Rússia venceu o campeonato mundial de hóquei no gelo, derrotando o Canadá. Em junho, chegou perto de vencer a Eurocopa, mas perdeu para a Espanha nas semifinais. Depois disso veio o Concurso Eurovision, uma competição anual de cantores pop europeus (raramente de primeira linha), no qual o russo Dima Bilan recebeu o primeiro prêmio por seu clipe musical "Believe". Também essa vitória ajudou a reacender o sentimento de orgulho nacional dos russos, que se estendeu do Kremlin para as ruas.
Os russos costumam reagir com humor negro a acontecimentos tanto bons quanto ruins, e os de 2008 não constituíram exceção. Uma piada retrata perfeitamente a atitude de soberba de Putin e seus aliados no Kremlin. Putin e Medvedev discutem sua invencibilidade recém-descoberta. "Eurovision, hóquei, futebol, transição presidencial tranqüila -que maré de sorte!", reflete Medvedev. "De fato, está na hora de começar a Terceira Guerra Mundial." Mas, como costuma acontecer, a soberba antecede a queda.

Geórgia e crise
Esta começou com um acontecimento que Putin enxergou como grande triunfo: sua blitzkrieg contra a Geórgia em agosto. Sim, o Kremlin conseguiu jogar por terra a esperança do atrevido Mikhail Saakashvili de reunificar seu país à força. Mas, na investida avassaladora russa contra tão fraco antagonista, o mundo enxergou um Estado quase bandido determinado a reconquistar seu império perdido.
Todas as certezas pós-Guerra Fria se desfizeram, e, com elas, a reputação de Putin de administrador confiável da economia. Os capitais começaram a fugir do país, algo que poderia não ter tido importância se a economia mundial não tivesse despencado brutalmente em setembro. Mas foi o que ela fez, e carregou a economia da Rússia com ela.
As reservas que a Rússia acumulou durante os anos de boom do petróleo estão sendo drenadas constantemente. Com o colapso dos preços do produto, esse pool de recursos não será cheio novamente com muita facilidade.
Isso pode ter um efeito devastador, porque todas as premissas fiscais da Rússia se baseavam na hipótese de que os preços do petróleo continuariam altos por anos ainda. Apesar disso, Putin está tentando afastar a crise, às custas de abrir o bolso. É pouco provável, porém, que esses esforços sejam suficientes, porque faltam à economia controladora, dominada pelo Estado -que agora conta com ex-agentes da KGB à frente da maioria das estatais- a agilidade e a diversificação que seriam necessárias para sua recuperação rápida.
Ademais, com a animosidade entre Oriente e Ocidente tendo chegado ao grau mais alto desde o final da Guerra Fria, os parceiros comerciais da Rússia procuram ansiosamente outras opções, o que pode significar que Putin também prejudicou as perspectivas de longo prazo da Rússia para uma recuperação movida pelas exportações.
De fato, a guerra na Geórgia provocou o antagonismo não apenas do Ocidente, mas também da China, que tem interesse estratégico vital em conservar a situação geo-estratégica do pós-Guerra Fria. Afinal, a China não quer ver um "revival soviético" em sua fronteira. Além de antagonizar a China, a guerra com a Geórgia expôs a fragilidade do rearmamento militar russo. É verdade que o Exército russo poderia esmagar a Geórgia e a maioria de seus vizinhos ex-soviéticos, mas sua performance na Geórgia demonstra que ele ainda é o Exército desajeitado e pouco motivado que era nos anos 1990.
Agora que os EUA deixaram de carregar o ônus de um presidente odiado em todo o mundo, Putin perdeu uma das ferramentas-chave que o ajudaram a elevar a posição da Rússia perante o mundo. Desagradar a Bush era uma coisa louvável a se fazer, aos olhos de muitos, especialmente na Europa. Mas saudar o elegante e popular presidente eleito Barack Obama com ameaças de estacionar mísseis nas fronteiras da Europa, como fez Medvedev no dia após a eleição presidencial americana, expôs o mau jeito opressor do Kremlin para o mundo todo ver, mais uma vez.


NINA KHRUSHCHEVA, autora de "Imagining Nabokov: Russia Between Art and Politics" (Imaginando Nabokov -a Rússia entre a arte e a política), leciona assuntos internacionais na The New School e é membro sênior do Instituto de Política Mundial, em Nova York. Este artigo foi distribuído pelo PROJECT SYNDICATE

Tradução de CLARA ALLAIN


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