São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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GUINADA À DIREITA

Ações que minam liberdades, como o Patriot Act, e distribuição de dinheiro público via igrejas são alguns dos saldos dos anos Bush

Neoconservadores atacam os direitos civis

DE NOVA YORK

AS MUDANÇAS OPERADAS na Casa Branca durante quatro anos de influência da ideologia neoconservadora não deixarão marcas apenas na política externa mas também no front doméstico. O governo de George W. Bush -no qual os chamados "neocons" ocupam postos de conselheiros- afrontou os direitos civis e os relegou a segundo plano, além de restringir a assistência social, conforme apontam estudos independentes e analistas.

No campo dos direitos civis, o ideário "neocon" produziu o seu pior saldo, graças ao balizamento das suas políticas pelos valores ultraconservadores e à adoção da segurança nacional como prioridade inquestionável.
Em relatório preliminar divulgado neste mês, a Comissão sobre Direitos Civis dos EUA concluiu que "o atual governo fracassou em exibir liderança ou definir um foco claro" e "relegou os direitos civis a um nível baixo de prioridade". Além disso, diz o texto, "as declarações do governo freqüentemente diferem de suas ações".
Entre os pontos críticos ressaltados no documento estão o atraso de dois anos em uma reforma do sistema eleitoral, a desigualdade na educação, a falta de incentivo às ações afirmativas, a falta de políticas efetivas que beneficiem os imigrantes e, principalmente, a discriminação racial. "O governo respondeu aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 instituindo regras que facilitam a discriminação, em vez de reduzi-la. Imigrantes e visitantes de países árabes ou do Oriente Médio são objeto de revistas redobradas."
Sobre educação, o relatório faz uma dura crítica ao programa-vitrine de Bush, o No Child Left Behind (nenhuma criança deixada para trás), o qual "não fez o suficiente para cobrir a lacuna de oportunidades entre as minorias e os estudantes brancos".
Outra questão crucial no ataque aos direitos civis nos EUA foi o Patriot Act, uma lei aprovada após o 11 de Setembro com o propalado objetivo de melhorar a segurança do país, mas que infringe uma série de direitos civis. Segundo a Aclu (União Americana pelas Liberdades Civis), a lei suspende a fiscalização de ações policiais e ameaça "os direitos e liberdades que tentamos proteger".
Além disso, uma agenda baseada em valores morais ultraconservadores tem ditado as decisões em questões como casamento gay e aborto. Nesses casos, a palavra final cabe aos Estados, mas o governo apóia emendas constitucionais, raríssimas nos EUA, que inviabilizariam as duas práticas.
No caso do casamento gay, Bush quer que a Constituição inclua a definição de casamento como a "união entre um homem e uma mulher". Segundo pesquisa do Instituto Gallup, de julho, 48% dos americanos são a favor da emenda, e 46% são contra.
No caso do aborto, ativistas afirmam que o projeto de lei, que define a morte de gestantes como duplo homicídio, abre caminho para que mulheres que interrompem a gravidez sejam julgadas como assassinas. De acordo com pesquisa do instituto Opinion Dynamics, de abril, 44% dos americanos são a favor do direito ao aborto, e 47% são contra.

Mais religião no Estado
Seguindo a cartilha "neocon", dentro das fronteiras Bush se concentrou em uma política de corte de impostos -que ajudou a alimentar um déficit fiscal recorde- e de enxugamento de gastos no setor social, onde buscou repassar responsabilidades.
"Os "neocons" não gostam da concentração de serviços sociais nas mãos do Estado e ficam felizes em estudar alternativas para cumprir esses serviços", escreveu Irving Kristol, que cunhou o termo "neoconservadorismo", em artigo recente para o American Enterprise Institute for Public Policy Research.
Sob Bush, neoconservadores se aliaram à direita cristã. O resultado dessa confluência de ideários, em termos de assistência social, é a criação do Escritório de Iniciativas Comunitárias e Baseadas na Fé tão logo ele assumiu a Presidência. "Quando observar uma necessidade social, o governo federal vai buscar iniciativas baseados na fé e grupos comunitários como parceiros", diz o programa de governo do presidente, propondo estender o projeto.
Em 2003, o governo federal repassou US$ 1,1 bilhão do orçamento social para esses grupos, e a idéia é aumentar o valor.
Entretanto, dizem os críticos, os critérios usados por muitas instituições religiosas para escolher os participantes de seus programas podem excluir do sistema pessoas cujo comportamento seja considerado inadequado pela instituição -como homossexuais, usuários de drogas e mães solteiras. Também há o temor de que a assistência seja condicionada à conversão religiosa.
Outro princípio "neocon" aplicado pelo governo é o de que assistência social deve ser, em todos os casos, compensada com trabalho. Essa visão aparece na reforma do sistema promovida em 1996, no governo do democrata Bill Clinton, mas foi Bush quem estendeu a exigência de serviço comunitário de 30 para 40 horas.
Segundo Margy Waller, especialista do Instituto Brookings que estuda as reformas no sistema social, o movimento obrigou os Estados a direcionarem parte da verba antes usada em subsídios ao transporte e creches para famílias de baixa renda.
"Se você tem de ter mais gente participando de serviços comunitários por semana, há um custo envolvido nisso. Você tem de criar as atividades", disse Waller à Folha. "Com isso, os Estados retiraram dinheiro de assistência -e não há provas de que isso produza melhores resultados. Por outro lado, há estudos mostrando que investir em transporte e creches ajuda as pessoas não só a conseguir empregos mas também a manter esses empregos."
Bush, em seu programa de governo, diz que as mudanças implementadas desde 1996 fizeram o número de pessoas inscritas em programas de assistência cair 60% até 2003, algo descrito como positivo. Também afirma que a pobreza infantil é a mais baixa em duas décadas.
Waller contesta a segunda informação e diz que a primeira não representa necessariamente um avanço. "Em alguns lugares, há critérios muito arbitrários para decidir quem é elegível para os programas", afirma. Segundo a especialista, hoje há duas vezes mais gente elegível para os programas do que pessoas se beneficiando deles. No meio dos anos 90, a porcentagem de beneficiados era de 85% do total.
Waller cita mais dois problemas na política social de Bush. O primeiro é não ajudar as pessoas na busca de um emprego real. O outro é que a população de baixa renda que está empregada fica excluída do sistema de benefícios.
Há duas semanas, um relatório divulgado pelas fundações Annie E. Casey, Ford e Rockefeller mostrou que 25% das famílias que trabalham nos EUA passam por dificuldades financeiras graves.

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