São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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CIÊNCIA E CULTURA

Debate revela que candidatos temem perder votos caso reconheçam o elo existente entre o consumo de energia e a mudança climática em curso no planeta

Na reta final, Bush e Kerry evitam Kyoto

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

PARA QUEM SE PREOCUPA, no Brasil, com o lugar da ciência e da tecnologia na arena pública, a campanha presidencial nos EUA parecia um sonho. Imagine: aquecimento global e células-tronco discutidos em horário nobre, para milhões e milhões de espectadores? Durou pouco. O último debate entre George W. Bush e John Kerry, no dia 13, se encarregou de devolver esses temas ao seu lugar de sempre -a periferia da vida política.

A pauta do encontro no Arizona não ajudava, por privilegiar temas domésticos. Ocorre que a mudança climática pode, sim, e deve, ser tratada de uma perspectiva nacional, por sua vinculação estreita com a questão da energia, insumo básico da atividade econômica.
Na mesma semana em que o preço do petróleo ultrapassava os US$ 50 por barril e em que vinha a público estudo confirmando que, por dois anos seguidos, a concentração de CO2 na atmosfera do planeta se manteve acima de 2 ppm (partes por milhão), o tema foi ignorado pelos dois candidatos a presidente.
É um sintoma ruim. Indica que mesmo o candidato democrata, Kerry, parece temer a repercussão política negativa de encarar de frente o problema e tratar dele em público. Só um cálculo desse gênero pode explicar que ele tenha deixado passar a oportunidade de fustigar Bush num tópico em que o atual presidente já se encontrava na berlinda.

Atmosfera de isolamento
O isolamento internacional dos EUA nessa matéria só perde para a guerra que Bush armou no Iraque, e mesmo assim apenas em intensidade, não em unanimidade. Quando assumiu o cargo e declarou que não ia aceitar o Protocolo de Kyoto, o presidente republicano alienou até aliados garantidos. Entre eles Tony Blair, premiê do Reino Unido, que vai pôr o assunto no topo da pauta do G-8 em 2005, quando estará presidindo o grupo dos sete países mais ricos acrescidos da Rússia.
Até o país governado por Vladimir Putin já ratificou o protocolo. Quando isso acontecer, entrará em vigor o tratado que determina corte em média de 5,2% nas emissões de gases do efeito estufa até 2012, em relação às emissões de 1990. Esses gases, CO2 à frente, agravam o fenômeno natural de retenção de radiação solar na atmosfera, que começa a se aquecer além da conta.
A principal fonte de emissões é a queima de combustíveis fósseis, como o petróleo. Viciada em energia barata, a economia norte-americana responde sozinha por mais de um quarto das emissões mundiais. Entre os países mais industrializados que assumiram as metas de redução de Kyoto a participação norte-americana nas emissões por cortar é ainda maior, para mais de um terço.
Nas projeções de centenas de pesquisadores do mundo inteiro reunidos no Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), um órgão criado pela ONU, a injeção de CO2 na atmosfera provocada por atividades humanas poderá ter conseqüências desastrosas. Entre as previsões está um aumento de 1,4C a 5,8C na temperatura média da atmosfera. E, também, uma elevação do nível dos mares em até 88 cm, antes do ano 2100.
Há forte suspeita ainda de que essa quantidade adicional de energia na atmosfera torne mais freqüentes eventos climáticos extremos, como tempestades, secas e El Niños. Embora ainda não seja cientificamente possível estabelecer uma relação direta entre o aquecimento global e a movimentada temporada recente de furacões, o vínculo já começa a ser feito por muita gente -inclusive por norte-americanos.
Como afirmou um editorial recente do jornal "The New York Times", parece que até os furacões, além de Blair e de Putin, estão mandando um recado a Bush. O mesmo texto adverte Kerry de que ele também deveria vir a público explicitar suas propostas para a questão energético-climática.
As posições de ambos sobre temas científicos só ficaram mais evidentes numa publicação de circulação restrita, mas influente: a revista "Science". Na sua edição de 1º de outubro, o semanário científico compilou as respostas dos candidatos a um questionário sobre temas de interesse da comunidade de pesquisa. Nenhum dos dois incluiu o combate ao aquecimento global entre suas prioridades.

Economia de hidrogênio
Curiosamente, Bush foi o que chegou mais perto disso. Ele declarou que priorizaria num segundo mandato estudos para deslanchar a chamada economia do hidrogênio, com base em células de combustível ("pilhas" de alta tecnologia que usam hidrogênio na geração de eletricidade para mover carros ou alimentar redes de energia). Essa fonte alternativa diminuiria emissões de carbono na atmosfera.
Nem por isso o atual presidente deu o braço a torcer. Sobre as previsões do IPCC, limitou-se a desencavar relatório da Academia Nacional de Ciências (NAS) de seu país que punha ênfase nas incertezas dos estudos climáticos.
Já Kerry declarou abertamente que considerava "convincente" a vinculação entre emissões antropogênicas e o aquecimento global. Advogou a adoção de um sistema "cap-and-trade" (fixação de um limite máximo de emissões, acompanhado de um mercado para troca livre de títulos de direito de emissão).
A boa notícia sobre clima, porém, não surgiu no debate do Arizona, mas de autoridades da Califórnia. O Estado com a maior frota de automóveis dos EUA havia decidido na semana anterior impor às montadoras uma meta à moda de Kyoto: reduzir em 30% as emissões de CO2 dos motores, até 2016. Nova York e outros seis Estados da Costa Leste ameaçam seguir o exemplo.

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