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CIÊNCIA E CULTURA
Debate revela que candidatos temem perder votos caso reconheçam o elo existente entre o consumo de energia e a mudança climática em curso no planeta
Na reta final, Bush e Kerry evitam Kyoto
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
PARA QUEM SE PREOCUPA, no Brasil, com o lugar
da ciência e da tecnologia na arena pública, a campanha
presidencial nos EUA parecia um sonho. Imagine: aquecimento global e células-tronco discutidos em horário
nobre, para milhões e milhões de espectadores? Durou
pouco. O último debate entre George W. Bush e John
Kerry, no dia 13, se encarregou de devolver esses temas
ao seu lugar de sempre -a periferia da vida política.
A pauta do encontro no Arizona
não ajudava, por privilegiar temas
domésticos. Ocorre que a mudança climática pode, sim, e deve, ser
tratada de uma perspectiva nacional, por sua vinculação estreita
com a questão da energia, insumo
básico da atividade econômica.
Na mesma semana em que o
preço do petróleo ultrapassava os
US$ 50 por barril e em que vinha a
público estudo confirmando que,
por dois anos seguidos, a concentração de CO2 na atmosfera do
planeta se manteve acima de 2
ppm (partes por milhão), o tema
foi ignorado pelos dois candidatos a presidente.
É um sintoma ruim. Indica que
mesmo o candidato democrata,
Kerry, parece temer a repercussão
política negativa de encarar de
frente o problema e tratar dele em
público. Só um cálculo desse gênero pode explicar que ele tenha
deixado passar a oportunidade de
fustigar Bush num tópico em que
o atual presidente já se encontrava na berlinda.
Atmosfera de isolamento
O isolamento internacional dos
EUA nessa matéria só perde para
a guerra que Bush armou no Iraque, e mesmo assim apenas em
intensidade, não em unanimidade. Quando assumiu o cargo e declarou que não ia aceitar o Protocolo de Kyoto, o presidente republicano alienou até aliados garantidos. Entre eles Tony Blair, premiê do Reino Unido, que vai pôr o
assunto no topo da pauta do G-8
em 2005, quando estará presidindo o grupo dos sete países mais ricos acrescidos da Rússia.
Até o país governado por Vladimir Putin já ratificou o protocolo.
Quando isso acontecer, entrará
em vigor o tratado que determina
corte em média de 5,2% nas emissões de gases do efeito estufa até
2012, em relação às emissões de
1990. Esses gases, CO2 à frente,
agravam o fenômeno natural de
retenção de radiação solar na atmosfera, que começa a se aquecer
além da conta.
A principal fonte de emissões é
a queima de combustíveis fósseis,
como o petróleo. Viciada em
energia barata, a economia norte-americana responde sozinha por
mais de um quarto das emissões
mundiais. Entre os países mais industrializados que assumiram as
metas de redução de Kyoto a participação norte-americana nas
emissões por cortar é ainda
maior, para mais de um terço.
Nas projeções de centenas de
pesquisadores do mundo inteiro
reunidos no Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática
(IPCC), um órgão criado pela
ONU, a injeção de CO2 na atmosfera provocada por atividades humanas poderá ter conseqüências
desastrosas. Entre as previsões está um aumento de 1,4C a 5,8C na
temperatura média da atmosfera.
E, também, uma elevação do nível
dos mares em até 88 cm, antes do
ano 2100.
Há forte suspeita ainda de que
essa quantidade adicional de
energia na atmosfera torne mais
freqüentes eventos climáticos extremos, como tempestades, secas
e El Niños. Embora ainda não seja
cientificamente possível estabelecer uma relação direta entre o
aquecimento global e a movimentada temporada recente de furacões, o vínculo já começa a ser feito por muita gente -inclusive
por norte-americanos.
Como afirmou um editorial recente do jornal "The New York
Times", parece que até os furacões, além de Blair e de Putin, estão mandando um recado a Bush.
O mesmo texto adverte Kerry de
que ele também deveria vir a público explicitar suas propostas para a questão energético-climática.
As posições de ambos sobre temas científicos só ficaram mais
evidentes numa publicação de
circulação restrita, mas influente:
a revista "Science". Na sua edição
de 1º de outubro, o semanário
científico compilou as respostas
dos candidatos a um questionário
sobre temas de interesse da comunidade de pesquisa. Nenhum
dos dois incluiu o combate ao
aquecimento global entre suas
prioridades.
Economia de hidrogênio
Curiosamente, Bush foi o que
chegou mais perto disso. Ele declarou que priorizaria num segundo mandato estudos para deslanchar a chamada economia do
hidrogênio, com base em células
de combustível ("pilhas" de alta
tecnologia que usam hidrogênio
na geração de eletricidade para
mover carros ou alimentar redes
de energia). Essa fonte alternativa
diminuiria emissões de carbono
na atmosfera.
Nem por isso o atual presidente
deu o braço a torcer. Sobre as previsões do IPCC, limitou-se a desencavar relatório da Academia
Nacional de Ciências (NAS) de
seu país que punha ênfase nas incertezas dos estudos climáticos.
Já Kerry declarou abertamente
que considerava "convincente" a
vinculação entre emissões antropogênicas e o aquecimento global. Advogou a adoção de um sistema "cap-and-trade" (fixação de
um limite máximo de emissões,
acompanhado de um mercado
para troca livre de títulos de direito de emissão).
A boa notícia sobre clima, porém, não surgiu no debate do Arizona, mas de autoridades da Califórnia. O Estado com a maior frota de automóveis dos EUA havia
decidido na semana anterior impor às montadoras uma meta à
moda de Kyoto: reduzir em 30%
as emissões de CO2 dos motores,
até 2016. Nova York e outros seis
Estados da Costa Leste ameaçam
seguir o exemplo.
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