São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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Cultura mostra polarização radical, inédita desde Vietnã

SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA

O estado de espírito em que o mundo cultural americano se encontra desde que George W. Bush implantou sua agenda conservadora como resposta aos ataques terroristas de 11 de Setembro pode ser resumido e exemplificado pela lista de livros mais vendidos de não-ficção do "New York Times", de domingo passado.
O primeiro lugar é de "America (The Book)", textos cômicos do apresentador de TV de esquerda Jon Stewart, em que a direita é esculhambada. Em segundo está "How to Talk to a Liberal (If You Must)" (como falar com um esquerdista, se for preciso), coletânea de colunas da comentarista ultraconservadora Ann Coulter que acaba com os democratas, Hollywood em particular.
Esse pensamento de "torcida de futebol" não ocorre faz tempo nos EUA, afirma um estudioso do comportamento do eleitor. "Desde a Guerra do Vietnã, nos anos 60, nunca o país esteve tão dividido como hoje", disse à Folha Vincent Hutchings, professor de ciência política da Universidade de Michigan. "É como se os republicanos estivessem se vingando pelos anos Clinton e os democratas, furiosos pelo fato de a eleição de Bush em 2000 ter sido um pleito "ilegítimo", entre aspas."
A novidade é que, desde 11 de Setembro, a primazia sobre as manifestações culturais saiu da mão dos liberais, como é chamada a esquerda (mais para centro-esquerda) americana, historicamente alinhada com Hollywood, a indústria fonográfica e a produção literária, e hoje é disputada palmo a palmo com os conservadores (a centro-direita e a direita). A novidade é que cada ação de um lado corresponde a uma reação quase imediata do opositor.
Michael Moore lançou em junho "Fahrenheit 11 de Setembro", o principal documento cinematográfico da Era Bush, em que, usando apenas o artifício da edição, o militante democrata critica duramente a administração Bush e faz ligações entre a reação ao ataque terrorista e os interesses econômicos da família presidencial. Menos de quatro meses depois, o republicano Kevin Knoblock contra-atacava com "Celsius 41.11", que tem Moore como alvo principal. O alcance de ambos (o primeiro com mais de US$ 100 milhões de bilheteria, o segundo com menos de um centésimo disso) é incomparável, mas a prática é reveladora.
Além disso, a ascensão conservadora na cultura trouxe de volta à cena seu filho bastardo, a intimidação. Esta mostraria a cara logo após o 11 de Setembro, na forma de boicote da mídia e de formadores de opinião a Noam Chomsky, Susan Sontag e Gore Vidal -as únicas três vozes que ousavam destoar do coro do ultrapatriotismo que se seguiu ao choque.
Mas foi mais grave meses depois, na véspera da invasão do Iraque, quando Sean Penn denunciou o que chamou de "macarthismo redivivo". No final de 2002, o ator pagou um anúncio no "Washington Post" pedindo que o presidente Bush interrompesse o ciclo de violência iniciado no 11 de Setembro. Desde então, disse, viu diversos projetos serem cancelados ou recusados por produtores preocupados com os humores da Casa Branca.
Seus colegas Tim Robbins e Susan Sarandon, ativistas de esquerda, relataram casos semelhantes. Penn revivia, assim, um trauma que não era estranho à sua família -o pai, o diretor Leo Penn, entrou para a lista negra da campanha anticomunismo desencadeada pelo senador Joseph MacCarthy (1909-57) nos anos 50.
Outra família hollywoodiana exemplifica tão bem a divisão da cultura que poderia estar num reality-show. O programa teria de se chamar "Os Baldwins". De um lado, Alec, 46, ator de "A Caçada ao Outubro Vermelho", democrata atuante; de outro, o caçula Stephen ("Os Suspeitos"), 38, republicano e evangélico recém-convertido. "Ele é um inocente útil e foi usado", disse Alec, sobre a participação do irmão na convenção que referendou a candidatura de Bush, em setembro.
"Minha participação na convenção tem a ver com meu desejo de apoiar o candidato que tem mais fé", rebateu Stephen. "Sistematicamente, Deus tem sido apagado e removido da nossa cultura, nossa sociedade, nosso governo, e eu acho isso assustador."
Outro ativista religioso, o diretor Mel Gibson, fez de seu libelo cristão e (segundo críticos) anti-semita o sucesso cinematográfico do ano. Falado em aramaico, "A Paixão de Cristo" deu um nó na cabeça dos estrategistas da indústria cinematográfica ao faturar US$ 650 milhões desde sua estréia, no começo do ano
Talvez a ironia esteja mesmo num programa de TV. Chama-se "American Dreams", vai ao ar aos domingos à noite numa emissora aberta. É a história de uma família fictícia que luta para ficar unida e tem como pano de fundo os EUA de verdade, metidos numa guerra num país distante, cujas tropas são acusadas de maus-tratos e foram colocadas ali por um presidente texano, que promete perseguir e matar os "malfeitores".
O detalhe é que a série se passa em 1965, a guerra é a do Vietnã e o presidente vindo do Texas chama-se Lyndon Johnson (1908-1973). "Fica cada vez mais difícil não fazer conexões entre as duas épocas e suas divisões", disse Jonathan Prince, produtor da série. Com ele concorda o professor Vincent Hutchings, que conclui: "Seja quem for o vencedor no dia 2, Kerry ou Bush, a probabilidade é que esta divisão continue."

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