São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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A ESQUERDA E A DIREITA

Falam Michael Hardt, autor de "Império", e Marvin Olasky, do "conservadorismo com compaixão"

"Pobres foram abandonados"

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

GEORGE W. BUSH ACELEROU o desmantelamento do Estado do Bem-Estar Social dos EUA, abandonando suas promessas de campanha de cuidar das crianças pobres e de priorizar a educação. Os custosos esforços militares de seu governo, que protagonizou dois conflitos (Afeganistão e Iraque), além da guerra ao terrorismo, só fizeram agravar a situação, pois consumiram fundos que deveriam ter sido destinados a programas sociais.

A análise é de Michael Hardt, um dos principais pensadores da esquerda dos EUA, que estuda os aspectos políticos, legais e socioeconômicos da globalização. Ao lado do filósofo italiano Antonio Negri, é autor de "Multitude" (multidão) e de "Império".
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

Folha - Como o sr. analisa as políticas sociais aplicadas por Bush?
Michael Hardt -
Primeiro, Bush deu continuidade ao desmantelamento do Estado do Bem-Estar Social. Este vem ocorrendo nos EUA desde a era [Ronald] Reagan [1981-89] e foi impulsionado por [Bill] Clinton [1993-2001]. Infelizmente, a retórica utilizada por Bush em 2000, segundo a qual as crianças pobres receberiam atenção especial do governo, não se traduziu em políticas públicas.
Segundo, os gastos militares elevadíssimos do governo tornaram impossível a aplicação de políticas sociais eficazes, que são custosas. Assim, a falta de dinheiro para financiar políticas sociais foi exacerbada no governo Bush por conta dos vultosos custos da segurança e das guerras.

Folha - Qual é o impacto social disso?
Hardt -
Obviamente, a distância entre os ricos e os pobres aumentou em razão da ausência de políticas sociais verdadeiras. Em diversas áreas, da educação à saúde, passando pelo seguro-desemprego, houve uma grave deterioração dos programas governamentais. O governo Bush não está por trás do início do processo, mas ele o exacerbou.

Folha - O "conservadorismo com compaixão" de 2000 desapareceu?
Hardt -
Sim. Para aplicá-lo, Bush teria de privilegiar políticas sociais condizentes com sua visão da época. Isso não ocorreu. Suas principais promessas de campanha, segundo as quais nenhuma criança seria deixada para trás e a educação seria prioridade, não foram cumpridas. Curiosamente, os republicanos não falam mais em "conservadorismo com compaixão". Essa imagem de Bush foi abandonada quando ele se transformou no presidente da guerra.

Folha - Não é, portanto, tão injusto dizer que ele favoreceu os ricos?
Hardt -
É verdade. De várias maneiras, podemos observar que ele tinha em mente os ricos quando tomou medidas socioeconômicas. Por exemplo, os cortes de impostos beneficiaram quem paga mais. Por outro lado, deve-se ressaltar que a guerra, sobretudo seu custo, não é realmente interessante para os mais abastados, embora possa beneficiar alguns grupos.

Folha - Se eleito, John Kerry será diferente de Bush nessas áreas?
Hardt -
No que tange aos elementos básicos do Estado do Bem-Estar Social, não há uma grande diferença entre ambos. Na verdade, essa é uma das características da estratégia democrata. Esta consiste em não apresentar um programa social significativamente diferente do republicano. Os democratas buscam propor o mesmo que os republicanos, mas um pouquinho mais à esquerda.
Nada em sua campanha ou em seu passado político sugere que Kerry venha a aplicar políticas sociais mais ousadas ou que venha a mudar essa estratégia democrata. Nada indica que ele vá dar mais valor à assistência aos pobres. As diferenças entre ambos são sutis. As principais são a intenção democrata de mudar a política fiscal e a de não privatizar parcialmente a Previdência, como quer Bush.

Folha - As perspectivas são, então, sombrias para os pobres?
Hardt -
Sim. Contudo uma derrota democrata poderia abrir caminho para uma reavaliação da estratégia eleitoral do partido. Com isso, em vez de apresentar um programa conservador, o Partido Democrata talvez venha a expor uma verdadeira alternativa à estratégia republicana, um programa que leve em conta os problemas sociais, a pobreza, a distância entre os ricos e os pobres.

Folha - Bush deu muito poder a instituições religiosas no que tange à aplicação de suas políticas sociais. Como o sr. vê essa opção de sua administração?
Hardt -
Não é uma boa idéia. Afinal, a Constituição estabelece uma clara separação entre Estado e religião. Com Bush na Presidência, essa regra tem sido freqüentemente esquecida. Essa tendência acabaria, ademais, destruindo a necessidade de um governo secular ativo nas áreas sociais.
Também é importante manter a separação entre a igreja e o Estado porque, caso contrário, as portas estariam abertas para um sistema em que haveria a exclusão de alguns grupos sociais. Por exemplo, as pessoas que não têm a mesma religião que a instituição que aplica a política social poderiam ser excluídas bem como aquelas que não têm nenhuma religião. O Estado laico é a maior garantia da liberdade de escolha e de religião.

Folha - A religião desempenha um papel importante no governo Bush. Qual é o real papel da religião na cena política americana?
Hardt -
Bem, não tenho certeza. É verdade que Bush dá muito valor à religião e enfatiza a relação entre suas crenças e sua administração. Outros políticos americanos também agem dessa forma.
Todavia não tenho certeza de que a religião não seja utilizada por eles para obter ganhos eleitorais. Não sei até que ponto a fé de muitos políticos dos EUA não advém da necessidade de conquistar um eleitorado que valoriza bastante esse aspecto. Não sei se a religião é tão importante assim.

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