São Paulo, quarta-feira, 24 de novembro de 2004

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ANÁLISE

População e capacidade de mobilização serão decisivas

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Apesar da pressão ocidental contra as fraudes eleitorais e da obstinação russa em defender o candidato pró-Moscou, o premiê Viktor Yanukovich, o desfecho da atual crise política ucraniana dependerá, sobretudo, da vontade popular e do poder de mobilização da oposição, liderada pelo derrotado Viktor Yushchenko.
Como demonstraram os casos recentes da Geórgia e de Belarus, a capacidade oposicionista de arrastar as massas para megaprotestos em praça pública tem um papel crucial no desenlace de tensões políticas nos países que, anteriormente, pertenciam à URSS.
Em 2003, o então presidente georgiano, Eduard Shevardnadze, foi acusado de ordenar "graves fraudes eleitorais" para manter-se no controle político. Centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas para protestar, e a chamada "revolução rosa" culminou com a posse do oposicionista Mikhail Saakashvili, ex-aliado de Shevardnadze, poucas semanas depois.
Em Belarus, por outro lado, em pleito também considerado fraudulento pela comunidade internacional, o presidente Alexander Lukashenko obteve, em outubro último, o apoio de quase 80% da população para permanecer à frente da cena política do país.
Embora Lukashenko seja visto como o "último ditador" da Europa por organizações de defesa dos direitos civis, a oposição bielo-russa não conseguiu sensibilizar a população, e sua causa não foi levada adiante. E, bem ou mal, Lukashenko continua no poder.
O caso ucraniano é ainda mais complexo. O país tem enorme relevância geopolítica para a Rússia e encontra-se num cruzamento de oleodutos e gasodutos de suma importância para Moscou, cujo embaixador em Kiev é ninguém menos que Viktor Chernomyrdin, ex-premiê e ex-homem forte da gigante estatal russa Gazprom.
Assim, o presidente Vladimir Putin usou seu peso político para convencer as comunidades de origem russa e bielo-russa a votar em Yanukovich. A iniciativa teve sucesso, mas essas comunidades só constituem 20% da população ucraniana e não foram decisivas.
A vigilância internacional é, portanto, essencial. Não se deve ingerir nos assuntos ucranianos. Porém também não se pode deixar que Moscou o faça, o que ocorreu explicitamente na campanha. Para tanto, o papel de dissuasão representado pela Otan (aliança militar) é incontornável.
Não se trata de preconizar um enfrentamento entre forças ocidentais e russas, mas de garantir que a vontade da população ucraniana será respeitada pelo poder central e pela vizinha Rússia.
Ainda assim, o impasse estará longe do fim. Sua resolução depende da atitude do presidente Leonid Kuchma e da de seus aliados, incluindo Yanukovich.
Estes sabem que o triunfo de Yushchenko representará um forte abrandamento da influência dos grupos político-econômicos que os apóiam, que ganharam força no processo de privatização dos anos 90. Buscam, assim, manter um status quo "favorável".
Ademais, ao contrário de Shevardnadze, Kuchma mantém o pagamento dos militares (oriundos de regiões russófonas em sua maioria) em dia. Isso significa que uma ordem para reprimir protestos poderia ser seguida à risca, abrindo caminho para exageros.
Caberá, nesse caso, à comunidade internacional a difícil tarefa política de impor sanções à Ucrânia contra a vontade de Moscou.
De qualquer forma, a crise é grave e só faz começar, pois o próximo presidente -pró-União Européia ou pró-Moscou- herdará um país ainda mais dividido entre o Ocidente e o Oriente do que nos últimos anos, um Estado em que a transição em direção ao Estado de Direito e à democracia ainda segue lentamente seu árduo curso.


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