São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

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ENTREVISTA

GORE VIDAL

Se você se importa com a América, é terrível viver nela

Em entrevista, o escritor americano, 80, diz que EUA estão numa "ditadura militarizada'

Autor de "Criação" faz crítica ao trabalho da mídia e também fala sobre os anos na Itália, em que também foi roteirista de Fellini

Mario Anzuoni - 9.nov.2005/Reuters
O escritor norte-americano Gore Vidal, autor de "Criação"


PETER POPHAM
DO "INDEPENDENT"

É espantoso, mas o velho senhor está tão belo quanto sempre, tanto quanto um astro de cinema. Até mesmo a fenda lateral que se abre em sua face direita quando ele sorri ou (o que acontece com mais freqüência) quando estremece diante das barbáries do mundo parece apenas intensificar seu glamour. A voz de barítono se conserva robusta e musical. Gore Vidal não está ficando flácido, gordo ou mesmo especialmente enrugado na velhice; em lugar disso, a impressão que se tem é que ele está adquirindo a qualidade do granito, assumindo ainda em vida o lugar que merece no monte Rushmore. Eu o encontro na Casa della Letteratura, ao lado do Corso Vittorio Emanuele, no centro de Roma, onde ele já passou a maior parte da manhã sendo o centro das atenções. Vidal está em Roma para aparecer no famoso festival de literatura da cidade, sob os arcos da Basilica di Massenzio, do século 4 d.C. Ele está estacionado de um lado da mesa, em sua cadeira de rodas, imensamente elegante em um terno marrom claro e gravata combinando. Como todo mundo sabe, durante muitos anos Vidal passou boa parte do tempo na Itália.


O pequeno Bush diz que estamos em guerra, mas não estamos em guerra porque, para estarmos em guerra, o Congresso precisa votar a favor disso. Ele diz que estamos em guerra, mas isso é uma metáfora, embora eu duvido que ele saiba o que isso significa

Mas deixou o país dois anos atrás, depois de perder seu companheiro de muitos anos, Howard Austen, e a capacidade de andar. Ele se mudou de volta ao sul da Califórnia, de maneira permanente. Eu lhe perguntei se ele vê a situação em seu país natal sob ótica diferente, agora que deixou de viver no exterior. "Nunca fui residente permanente no exterior", ele respondeu. "Nunca fui visto assim por ninguém, exceto pela extrema direita. Eu tinha uma casa no sul da Itália e outra no sul da Califórnia -mas, nos círculos da extrema direita, isso é o bastante para ser visto como expatriado. A América sempre foi o tema sobre o qual escrevi." Então como é viver nos Estados Unidos em tempo integral? "Se você se importa com a América, é terrível", disse Vidal. "Se você está ganhando dinheiro, você não liga para isso. Mostraram a nova Constituição americana a Benjamin Franklin, e ele disse: "Não gosto dela, mas vou votar nela porque precisamos de alguma coisa neste momento. Mas, com o tempo, essa Constituição vai acabar fracassando, como fazem todos os esforços dessa natureza. E vai fracassar devido à corrupção das pessoas, em sentido geral". E é a isso que se chegou agora, exatamente como Franklin previu."

Bush
Chegamos rapidamente à mensagem central de Gore Vidal. Como o próprio observa, ele "viveu três quartos do século 20 e um terço da história dos EUA" e, ouvindo-o falar, nos sentimos na presença da história, de uma maneira que acontece com poucos americanos. Mesmo hoje, aos 80 anos de idade e confinado numa cadeira de rodas, ele se nega a abrir mão do espaço central que ocupa no palco americano. Ele continua a ser o inimigo mais obstinado, erudito e insolente da administração Bush. Ninguém até agora apresentou o argumento contra os neoconservadores com mais paixão ou precisão do que Gore Vidal. Perguntei por que é tão medonho viver na América. "Fomos privados de nosso direito", ele responde. "A eleição foi roubada tanto em 2000 quanto em 2004, devido a máquinas eletrônicas de voto que podem ser consertadas facilmente. Tivemos duas eleições ilegítimas seguidas... O pequeno Bush diz que estamos em guerra, mas não estamos em guerra porque, para estarmos em guerra, o Congresso precisa votar a favor disso. Ele diz que estamos em guerra, mas isso é uma metáfora, embora eu duvido que ele saiba o que isso significa. É como travar uma guerra contra a caspa de cabelo: é interminável e não faz sentido. Estamos numa ditadura que foi totalmente militarizada; todo o mundo é espionado pelo próprio governo. Todos os três poderes do governo estão nas mãos dessa junta." "Seja você o que for", ele prossegue, "eles dizem que você é o inverso. Os homens por trás da guerra no Iraque são covardes que não combateram no Vietnã -mas gastaram milhões de dólares para provar que John Kerry, que foi um genuíno herói de guerra, não importa o que você pense de sua política, foi covarde. É isso o que acontece quando você tem controle sobre a mídia, e nunca conheci a mídia mais viciada, estúpida e corrupta do que está hoje."

"Um lugar apenas"
Perguntei a ele se existe algo da Itália do qual sente saudades desde que voltou à Califórnia, dois anos atrás. "É um lugar, apenas", diz ele, a fenda desdenhosa se abrindo em seu rosto. "Não sou muito sentimental em relação a lugares." Vamos lá, Vidal, tente enganar outra pessoa. Durante a maior parte de cada ano, e por 40 anos, ele dividiu com Howard Austen uma vila (residência com jardim) chamada La Rondinaia (o ninho da andorinha) que se erguia sobre um penhasco íngreme, proporcionando uma vista infinita do nebuloso mar Tirreno e a próxima curva rochosa e sinuosa da costa italiana ao sul de Nápoles, célebre por sua beleza -o tipo de lugar que é visto como paraíso por qualquer pessoa que já ansiou por afastar-se da chuva e da poluição urbana. A vida de Vidal em La Rondinaia foi o prolongado ponto culminante de seu período italiano, que começou em 1959, quando o diretor de Hollywood William Wyler o contratou para trabalhar sobre o roteiro de "Ben Hur", ao lado do dramaturgo britânico Christopher Fry. Vidal se mudou para Roma para fazer o trabalho. Vidal fez uma ponta no papel dele mesmo em "Roma, Cidade Aberta", de Fellini, e, também para Fellini, escreveu um roteiro sobre a vida de Casanova que mais tarde foi filmado. Ele e Howard Austen primeiro viveram em Roma e depois compraram La Rondinaia, que tinha 465 m2 e foi construída pela filha de lorde Grimthorpe, um advogado e político britânico do século 19 que era proprietário da muito mais pomposa Villa Cimbrone, a poucos metros de distância. Nenhum artigo sobre Gore Vidal estaria completo se não mencionasse seus amigos famosos, e é verdade que La Rondinaia recebeu muitos convidados elegantes durante os 30 anos que passou nas mãos de Vidal e Austen, incluindo Rudolf Nureyev, Lauren Bacall, Paul Newman, a princesa Margaret, Tennessee Williams e muitos outros. Mas uma velha amiga enxergou solidão, em lugar de sociedade, no poleiro italiano de Gore Vidal -uma solidão produtiva. "Gore está sempre trabalhando, mas com a porta de sua grande sala de trabalho escancarada", diz Barbara Epstein, editora do "New York Review of Books", recordando suas visitas à casa. "À noite você tem esse maravilhoso jantar infestado de massas na sala de jantar bela, mas pequena -Howard era um cozinheiro maravilhoso-, você ouve música no "salone" e toma um pouco do muito bom vinho local. É tranqüilo, até aconchegante."

Cabeça na América
Vidal trabalhava na Itália, mas, como me contou, era sempre a América que ocupava sua mente. Apresentado à política ainda muito jovem -graças a seu avô senador-, a América e seus males é um tema que nunca lhe deu paz; podemos desconfiar que, deixando de lado seu clima, a comida e as vistas, o mérito principal da Itália fosse o fato de mantê-lo a certa distância de seu país natal e os problemas dele. Vidal diz que Fellini explicou que escolheu "Gorino" para representar a si mesmo em "Roma, Cidade Aberta" "porque ele é típico de um certo tipo anglo que vem a Roma e vira nativo". Mas isso era bobagem. "Como nunca cheguei a falar bem o italiano, muito menos o dialeto de Roma, e como meus dias eram passados pesquisando sobre o século 4 d.C., eu era tão pouco "alguém que virou nativo" quanto seria possível." "Não sou sentimental em relação a lugares", diz Gore Vidal -mas o que parece mais provável é que, por trás de seu rosto de granito e daquelas opiniões secas, enunciadas com tanta beleza, exista um sentimento inflamado, doloroso demais para ser exposto.

Seja você o que for, eles dizem que você é o inverso. Os homens por trás da guerra no Iraque são covardes que não combateram no Vietnã -mas gastaram milhões para provar que [o adversário de Bush na eleição de 2004] John Kerry, que foi um genuíno herói de guerra, foi covarde

"Sinto saudades quando leio onde eu estava em 1991 -minha sala de trabalho em Ravello", ele diz ao público em Roma, e cita um trecho de "Palimpsesto", seu livro anterior de memórias: "Um cubo branco com teto em arco e uma janela à minha esquerda cuja vista atravessa o golfo de Salerno, em direção a Paestum; no momento, um mar cinza metálico criou uma névoa branca que obscurece o sol cada vez mais hostil". "Quando cito essas linhas, eu me carrego de volta àquela época, quando Howard ainda estava vivo e nosso mundo ainda não se cindira."
Tradução de CLARA ALLAIN


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