São Paulo, domingo, 26 de abril de 1998

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Livro aborda o massacre

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Um jovem armênio de 24 anos, Salomon Teilirian, mata a tiros às 11h do dia 21 de março de 1915, na rua Hardenberg, em Berlim, o ex-grão-vizir da Turquia Talaat Paxá, que estava com 59 anos, caíra em desgraça em seu país e obtivera asilo na Alemanha.
Teilirian, apesar de réu confesso, foi absolvido a 3 de junho pelo Terceiro Tribunal de Primeira Instância de Berlim.
Se aplicada ao pé da letra pelos 12 jurados, a legislação penal da República de Weimar estipularia para o homicídio a pena de morte. Mas o veredicto tinha uma outra dimensão. Talaat, de vítima, tornou-se documentalmente o carrasco de um genocídio que os armênios afirmam ter ceifado a vida de mais de 1 milhão dos seus.
Uma editora alemã publicou ainda em 1921 os autos do processo. É o mesmo texto que a Paz e Terra traduziu no Brasil -"Um Genocídio em Julgamento - O Processo Talaat Paxá na República de Weimar".
Trata-se da única peça judicial em meio a uma ampla bibliografia sobre a operação concebida pelo Comitê para a Unidade e o Progresso, órgão dos chamados Jovens Turcos ao qual se atribuiu a missão de eliminar fisicamente a nação armênia, entre 1915 e 1918.
O livro é exemplar pelo valor histórico dos depoimentos reunidos pela defesa. Os requintes de brutalidade são de embrulhar o estômago.
"Das mulheres grávidas eles partiam as costelas, arrancavam a criança e jogavam fora", diz uma das testemunhas, que também relata a prática de estupros em massa. "Vi partirem o crânio do meu irmão com um machado", diz o réu. "Arrastaram minha irmã e a violentaram."
Ele próprio, dado como morto, ao acordar, viu o corpo de sua mãe de bruços e o corpo de seu irmão sobre o dele. Números citados por peritos no processo indicam que, dos 1,8 milhão de armênios que então viviam na Turquia, 1,4 milhão foram deportado com a expressa recomendação de apenas 10% chegarem ao destino.
Se cumprida ao pé da letra, a recomendação teria levado à morte de 1,26 milhão de pessoas. Os turcos admitiram oficiosamente "apenas" 300 mil.
Oficialmente, porém, o genocídio inexistiu. Nenhum tribunal internacional tratou do caso e nenhum equivalente ao de Nurembergue apurou responsabilidades pelo massacre.
O contexto histórico -que o livro da Paz e Terra ignora- é dos mais complicados. Os armênios viveram pacificamente por seis séculos dentro do Império Otomano, que por sua vez ingressa no século 20 em rápido processo de declínio.
Queda de um império
Em 1911, os turcos perdem uma rápida guerra para a Itália. Nos dois anos seguintes, saem enfraquecidos pelas duas primeiras guerras dos Bálcãs. Aliam-se aos alemães, em 1914, na Primeira Guerra Mundial.
Ingleses e franceses, bem antes disso, procuram instrumentalizar o nacionalismo armênio para criar dificuldades à manutenção da unidade turca. O troco é violento. Em 1909, um primeiro massacre de armênios faz 20 mil vítimas. A senha para a nova operação de extermínio é dada em abril de 1915, com a prisão em massa de intelectuais e líderes comunitários armênios.
Juntamente com Enver Paxá (1881-1922), Talaat Paxá procura eliminar o que os Jovens Turcos acreditam ser um obstáculo nacional (minoria inassimilável), religioso (minoria cristã num decadente império muçulmano) e militar (há 2,3 milhões de armênios na Rússia, muitos oficiais do czar).
Deu no que deu. A Armênia se tornou uma das repúblicas soviéticas, que abrigou apenas a minoria de uma diáspora hoje estimada em 5,1 milhões de pessoas.
Uma população que seria incomparavelmente maior sem o trauma dessa grande matança que permanece impune.



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