São Paulo, quinta, 26 de junho de 1997.



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HOMENAGEM
"Ele foi um dos grandes espíritos do planeta"

JOSÉ LUTZENBERGER
especial para a Folha

Durante a preparação da Conferência Eco-92, conversei longamente com Jacques Cousteau, em Brasília. Raras vezes em minha vida encontrei pessoa tão profundamente preocupada com as calamidades ecológicas que a atual cultura consumista prepara, já para as crianças e jovens de hoje, sem falar das gerações futuras.
Preocupava-se com a cegueira da grande maioria e estava revoltado com o imediatismo dos poderosos em governos e tecnocracia.
Em setembro de 1993, voltamos a nos encontrar, em Stuttgart, na Alemanha. Estávamos participando de um dos eventos mais lindos e comoventes que jamais presenciei. Era uma "reunião de cúpula de crianças". Tinham entre 8 e 14 anos e vinham de toda a Europa.
Lá estava Cousteau entre os assessores convidados pelas crianças, adorados por elas. Ele armou barraca própria para promover a idéia que já lançara em 1992 e que não foi aceita pelos governos que participaram da conferência. Para complementar a Declaração dos Direitos Humanos, aprovada quase unanimemente em 1948, com abstenção apenas da ex-URSS, da Arábia Saudita e da África do Sul, Cousteau queria uma nova declaração, uma Declaração dos Direitos das Gerações Futuras.
Desde a infância, Cousteau fazia parte daquelas pessoas, infelizmente tão raras, que mantêm diálogo intensivo com a natureza.
Foi o primeiro a explorar o mundo submerso e soube mostrá-lo ao grande público. inventou máscara, snorkel e pé de pato, desenvolveu o aqualung e câmaras especiais para fotografia subaquática.
Aprofundou sempre mais as suas observações e descidas. Desenvolveu submarinos e equipamentos fotográficos e de TV até para as tremendas pressões das trincheiras abismais, onde se observa em ação os mecanismos da deriva dos continentes com suas erupções submarinas.
Com suas invenções, conseguiu montar um império industrial com ramificações em vários continentes. Seus lucros sempre foram reinvestidos em novas observações e pesquisas.
Com o passar dos anos, o que via em toda a parte levou-o a preocupar-se sempre mais com os estragos ecológicos. Chegou mesmo a arrepender-se de sua própria contribuição indireta.
Com a popularização dos equipamentos de mergulho, surgiram no mundo milhões de caçadores submarinos. É triste ver como a maioria dos que mergulham só pensa em tirar troféu.
Mas Cousteau chegou a preocupar-se com a globalidade dos estragos que hoje cometemos na água, na terra e no ar; chegou à visão holística de nosso planeta como sistema vivo, com sua bio-geofisiologia. Tornou-se um dos mais poderosos ambientalistas.
Foi com este intento que fez sua famosa expedição à Amazônia. A expedição suscitou inicialmente protestos de alguns que suspeitavam fins escusos. São muito comuns, especialmente entre políticos, as pessoas que não conseguem entender que alguém possa agir de maneira desinteressada, simplesmente por idealismo.
Ele refletia muito profundamente sobre quais as verdadeiras causas de nossa atual agressividade e poder destruidor diante da natureza. A campanha de assinaturas por uma Declaração dos Direitos das Gerações Futuras era apenas parte de seus esforços.
Com os ecólogos de pensamento mais profundo compartilhava a convicção de que nosso atual desastre é de fundo filosófico-religioso. Dava-se conta de que a atual forma de sociedade industrial é uma religião fanática, que no mundo vê apenas um repositório gratuito e infinito de recursos, de matérias-primas e de espaços a serem conquistados, de sistemas vivos a serem dominados, demolidos ou eliminados.
Se a Humanidade conseguir atingir um desenvolvimento sustentável, se conseguir sobreviver ao próximo século, Cousteau será venerado como um dos grandes profetas que prepararam a transição. Ele foi um dos grandes espíritos que esse planeta vivo Gaia soube ver. Um marco na história da vida.


José Antônio Lutzenberger, 70, é engenheiro agrônomo e ecologista. Foi secretário nacional do Meio Ambiente no governo Collor. Criou a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural e a Fundação Gaia, para atividades de recuperação de áreas degradadas, paisagismo natural e cursos sobre educação ambiental.



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