São Paulo, segunda-feira, 26 de setembro de 2005

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ARTIGO

Fuga de Houston

MARCOS PONTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O sol brilhava intensamente. O calor era insuportável. No mínimo 40C. Os olhos e o nariz ardiam com os gases de combustão e o cheiro de gasolina dos motores. Qualquer brisa seria muito bem-vinda. Mas o ar estava parado, como no momento, sem fôlego, que antecede algo terrível. De tempos em tempos era necessário fechar as janelas e ligar o ar-condicionado. O alívio durava apenas alguns minutos, até o indicador de temperatura do carro subir perigosamente. Não seria uma boa idéia ficar ali, no meio daquela estrada, e arriscar a possibilidade de enfrentar no dia seguinte a chuva e os ventos de mais de 200 km/h, sem proteção.
Eram milhares de carros, caminhões, ônibus, todos os tipos possíveis de veículos, lotados de documentos, animais, fotos, recordações, roupas, comida, água, o mínimo, que cada uma daquelas pessoas considerou essencial salvar da fúria do Rita, que se aproximava rapidamente e ganhava força no golfo do México.
"Inacreditável! Isto não pode estar acontecendo conosco! Justamente agora!" desabafou Fátima, minha mulher, balançando a cabeça enquanto avaliava a seriedade da situação.
Saímos de casa às oito horas da noite. O dia tinha sido de trabalho intenso, escolhendo o que salvar conosco e embalando o que ficaria, guardado em sacos plásticos, amarrado nos pontos mais altos do interior da casa. Era a esperança de que alguma coisa pudesse sobreviver à tormenta. A viagem de 300 km entre Houston de Dallas durou 17 horas em primeira marcha. Dirigir continuamente por esse período, após um dia completo de preparação de material em casa, foi um desafio à parte. O sono tornou-se quase incontrolável nas últimas horas da viagem. A partida foi lenta e triste, deixando para trás cansaço e vulnerabilidade. A viagem foi longa, com tempo de avaliar nossas vidas e prioridades.
Centenas de carros com o capô aberto, sem combustível ou com algum outro problema, ficaram pelo canteiro central. Pessoas se ajudavam, transportando o que era possível nos veículos que ainda funcionavam.
A área de Houston é o maior centro de produção e processamento de petróleo dos Estados Unidos. Um impacto direto sobre a cidade teria conseqüências enormes sobre esse fator da economia do país. Além disso, outros setores de destaque da cidade como as pesquisas médicas (Houston Medical Center) e as atividades espaciais seriam fortemente afetadas.

Livros de russo
Nesta semana, o controle da Estação Espacial Internacional foi passado inteiramente para o Centro de Controle em Moscou na Rússia. Em Johnson Space Center todas as operações foram canceladas, a partir de quarta-feira, sem previsão de retorno. A construção da Estação Espacial Internacional, já afetada em termos de cronograma devido ao atraso do retorno ao vôo dos ônibus espaciais, poderá ser ainda mais atrasada.
Quanto ao treinamento na Rússia e a decolagem para a realização da primeira missão científica orbital brasileira, as datas permanecem as mesmas. No cronograma atual, ainda dependente da assinatura final do contrato entre a Agência Espacial Brasileira e a Agência Espacial Russa, eu deverei seguir para início de treinamento em "starcity", a 25 km de Moscou, até o final deste mês de setembro. O vôo deverá partir de Baikonur, Cazaquistão, em abril de 2006. Trouxe comigo meus livros de russo e os manuais técnicos das espaçonaves.
Quanto ao Rita, sabemos que o espaço destruído pela fúria da tormenta será ocupado por novas casas, prédios, ruas, jardins, crianças brincando. Destruir é a natureza do furacão, e de outros fenômenos naturais ou não. Mas, sobreviver, ser feliz, são partes da natureza humana.


Marcos Cesar Pontes, tenente-coronel da Força Aérea Brasileira, treina desde 1998 na Nasa, em Houston, para ser o primeiro astronauta brasileiro a fazer viagem espacial em 2006


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