São Paulo, quarta-feira, 27 de outubro de 2004

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OLHAR BRASILEIRO

À espera da fraude

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

Dada a falta de legitimidade da vitória de Bush em 2000 e as iniciativas de profundas conseqüências tomadas por seu governo, as eleições de 2 de novembro estão sendo vistas como um referendo sobre sua política interna e, sobretudo, externa.
Mas será realmente um referendo? Por mais que a Guerra do Iraque seja um desastre em todos os sentidos e polarize a opinião, por mais que a economia tenha estagnado e o déficit interno crescido, por mais que o corte de impostos tenha favorecido os ricos, por mais que ameaças de atentados sejam usadas pelo governo para assustar o eleitorado e incutir a idéia de que Bush é mais macho do que Kerry, não estou certa de que isso vá decidir a eleição.
O que acaba decidindo são os chamados "temas específicos" próximos de cada um. Basta ver que uns bispos católicos decretaram que era pecado votar em Kerry, porque ele é favorável ao direito ao aborto.
Nesse sentido, o que apavora muitos norte-americanos é a composição da Suprema Corte. Afinal os juízes do Tribunal são vitalícios e sobrevivem portanto aos governos. Por considerarem ilegítimo o governo atual, os democratas obstruíram até agora todas as nomeações de juízes que Bush tentou fazer. Mas quem for eleito desta vez vai poder indicar uns três ou quatro.
As inclinações desses juízes são consideradas essenciais. Por quê? Porque num país com uma Constituição de apenas 12 artigos, é a Suprema Corte que define as grandes direções do que aqui é chamado de "questões culturais". Para a direita "profunda", interessam as posições dos juízes quanto a aborto, ensino religioso e juramento à bandeira nas escolas, casamento gay, pesquisa com células-tronco, ou seja, o que os fundamentalistas cristãos e nacionalistas entendem por valores americanos. Para os outros, acrescentam-se as liberdades democráticas, a ecologia, as instituições.
A expectativa é que haja fraude nas eleições, e os indícios são preocupantes. Para começo de conversa, não há e não haverá até 2006 um registro nacional de eleitores. Em um país onde o voto não é obrigatório, grupos de interesse têm feito enormes esforços para que os cidadãos se alistem e votem. Desde já, em alguns Estados está se negando registro de eleitor à população pobre, sobretudo negra, com todo tipo de subterfúgios. Prevêem-se longas filas e obstruções para desencorajar a população a votar.
Ninguém confia no voto eletrônico que vai ser usado pela primeira vez em razoável escala (1/3 dos votantes), porque é gerido por companhias privadas, algumas com antecedentes partidários. O Estado de Missouri está até pedindo aos soldados no exterior que mandem votos abertos por e-mail através de uma companhia que tem contratos militares!
Finalmente, a possibilidade de recontagem é crucial, mas achou-se supérfluo gastar em máquinas que passassem recibo do voto eletrônico em papel e que, portanto, permitissem uma eventual recontagem. Com o clima tenso e polarizado desta eleição, poderia se chegar a um impasse em que nenhuma parte admitisse o resultado. Seria essencial, em suma, o acompanhamento por um grupo de observadores internacionais isentos.
Dada a derrota de Bush nas pesquisas de opinião no resto do mundo, podem ser difíceis de achar.


Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga, foi professora titular da USP e leciona na Universidade de Chicago


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