São Paulo, terça-feira, 28 de março de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

EUROPA

Jovens dos subúrbios de Paris prometem violência hoje, mas não se identificam com estudantes que se opõem a lei trabalhista

França faz jornada de protestos, mas periferia segue alheia

FÁBIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL A PARIS

Hoje, uma vez mais, a França vai rugir. Na batalha que travam há dois meses com o governo contra uma nova lei trabalhista para jovens, estudantes e sindicalistas prometem protestos de grande porte e, pela primeira vez desde o início da crise, greve.
A paralisação afetará parte dos transportes públicos em todo o país, assim como alguns setores do funcionalismo e trabalhadores da educação -a maioria das universidades já está parada. Vem acompanhada por um indicativo para uma outra possível greve, na semana que vem.
A idéia é tornar insustentável a pressão sobre o primeiro-ministro Dominique de Villepin a fim de que ele retire o CPE (Contrato de Primeiro Emprego), previsto para vigorar a partir do mês que vem. Concebida para estimular a contratação de jovens de 15 a 26 anos, a lei foi rejeitada pela população por também diminuir encargos sociais, permitindo que o empregado seja demitido sem justa causa até dois anos após a contratação.
Contaminado pelo saldo de violência que acompanhou as manifestações das últimas semanas (mais de mil presos e centenas de feridos), o tom do chamamento é grave. Expressões como "Terça-feira Negra", "Dia da Virada", "Jornada de Mobilização" e "Dia da Ação " inundam as ruas e a mídia da França.
Em Clichy-sous-Bois, subúrbio pobre e desolador a 20 km de Paris, não significam muito. Ali, onde no ano passado teve início a maior revolta social dos últimos anos no país, a percepção do atual motim é totalmente alheia àquela observada na classe média revoltosa da Paris intramuros.
Foi em Clichy que dois adolescentes morreram eletrocutados ao fugirem da polícia em outubro, incidente que serviu de estopim para a "revolta dos incendiários", um grito violento contra a discriminação dos jovens do subúrbio que terminou com quase 10 mil carros queimados e fez a França decretar estado de emergência.
Naquela ocasião, a Folha foi duas vezes à cidade. Ao retornar ontem, encontrou um lugar parado no tempo. O ar carregado, a tensão e a violência, que agora assombram Paris espasmodicamente, nunca sumiram do cotidiano de Clichy, independentemente de haver ou não novos carros queimados.
Na terça-feira passada, às 11h30 da manhã, um bando atacou um supermercado e uma loja de bijuterias num centro comercial. Ainda há vidros quebrados no local, e a lojinha não foi reaberta. Dias depois uma briga entre curdos e turcos, na qual uma bomba foi detonada, apavorou um bairro.
Nas manifestações de Paris, majoritariamente pacíficas, a violência vem dos "casseurs " (bagunceiros), grupos localizados e alheios à causa, que vão às marchas só para brigar, quebrar e assaltar. Encapuzados, em sua maioria negros e magrebinos, os marginais, dizem os parisienses, vêm das "banlieux" (periferias) como Clichy.
Os moradores de lá não apenas atestam as acusações, como justificam ou legitimam o uso da violência, a confirmarem que a guerra dos estudantes não é a mesma guerra dos incendiários.
"Quebram e roubam para se divertir e, vá lá, também para dizer: "estamos aqui. Vivemos na merda, ninguém liga para nós, mas existimos". Claro que vão protestar, veja como se vive aqui ", observa Kemal, 19 anos, apontando para um prédio aos pedaços.
"É a única forma que têm de serem ouvidos e notados", conta Majou, 17 anos, cercada de cinco garotos na mesma faixa etária. Matam aula em frente ao liceu Alfred Nobel. Todos se dizem contra o CPE, mas, antes dela, afirmam ser contra todo o governo.

O diabo Sarkô
Um deles afirma que irá hoje à capital e que vai "quebrar tudo". Quase imediatamente surge o nome que incendeia qualquer "banlieu". "Vamos para acabar com Sarkozy", diz um. "Sarkozy de merda, não vai ter sossego", emenda outro.
Nicolas Sarkozy, o ministro do Interior linha-dura, é o diabo em forma de gente na periferia. Aqui talvez resida a subtrama mais interessante da crise. Para os líderes dos protestos contra o CPE, o vilão da vez é o premiê Villepin, mentor da lei e principal adversário político de "Sarkô" no governo, além de seu rival na corrida para suceder o presidente Jaques Chirac nas eleições de 2007.
À medida que Villepin se afunda com sua resistência em retirar o CPE, Sarkozy busca ganhar capital político, e cada vez mais abertamente. No sábado, em um encontro de seu partido, o UMP, fez um discurso em que apoiava as motivações dos jovens. Ontem exortou o governo a ampliar o diálogo com os manifestantes.
Pode até funcionar com o grosso dos envolvidos, na Paris intramuros. Não convence as "banlieux". Foi "Sarkô" quem , no início da revolta incendiária, chamou os jovens suburbanos de "escória" e "ralé", jogando combustível na crise.

O vilão Villepin
Villepin tampouco seduz quem vive em Clichy, ainda que a maior motivação do governo para criar o CPE tenha sido justamente a rebelião do ano passado, que escancarou o agudo problema do desemprego entre os jovens franceses (de quase 23% na faixa etária, salta para até 40% nas periferias).
Cada vez mais acossado, o premiê ontem fez um convite a sindicalistas e estudantes, com quem iniciara um diálogo tímido no fim de semana, para discutirem amanhã "ajustes" na lei, sem no entanto mencionar sua retirada, única alternativa considerada pelos manifestantes.
O CPE, ao qual se opõem cerca de 70% dos franceses, tem sido elogiado por toda a Europa, por supostamente marcar o início do fim de um sistema de seguridade social paternalista e arcaico.
Em Clichy-sous-Bois, onde esse sistema parece nunca ter funcionado plenamente, toda a discussão faz pouca diferença.


Texto Anterior: Hamas apresenta gabinete e fala pela primeira vez em negociação
Próximo Texto: Casal 20: Belos são "rosto" de movimento estudantil
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.