São Paulo, terça-feira, 29 de junho de 2004

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COMENTÁRIO

Prova máxima do fracasso

SÉRGIO MALBERGIER
EDITOR DE MUNDO

Não que precisasse, mas a cerimônia medrosa de "transferência de soberania" do procônsul dos EUA ao novo premiê iraquiano (escolhido por Washington) foi a prova máxima do fracasso do governo de George W. Bush em administrar o pós-guerra do Iraque.
Em oposição a esse fracasso retumba o sucesso dos insurgentes: foram eles que obrigaram o administrador americano do Iraque, Paul Bremer, a se trancar num escritório acanhado e passar o rojão para o premiê Iyad Allawi, velho colaborador da CIA, dois dias antes do previsto. Sem festa. Momentos depois, Bremer subiu num helicóptero vestindo um colete antibalas e partiu. Uma cena digna da debacle no Vietnã.
Que os americanos achem que o truque do adiamento foi um golpe nos insurgentes mostra que, para Washington, sua prioridade hoje é limitar os danos que a desastrada guerra pode trazer à campanha eleitoral de Bush.
Suas chances de se reeleger em novembro estão diretamente ligadas ao ponto central de seu governo: a "guerra ao terror", motivada pelo 11 de Setembro, cujo pináculo foi a guerra de opção no Iraque. E as pesquisas mostram que a maioria do eleitorado hoje a considera um erro.
Mesmo o aparente sucesso da guerra convencional, que fez com que a ditadura do sanguinário Saddam Hussein caísse em poucas semanas, pode ser contestado: as forças leais ao regime e ao seu sistema de favorecimentos constataram que seria suicídio enfrentar o formidável poderio americano no campo de batalha.
Preferiram preservar arsenal e combatentes para esta segunda etapa da guerra e vêm impondo derrotas humilhantes aos EUA com seus atentados diários que fizeram a população ter saudade da segurança pública dos tempos de Saddam.
A guerrilha iraquiana, reforçada por combatentes jihadistas, controla hoje a cidade de Fallujah, ao norte de Bagdá, que vem se tornando uma espécie de Afeganistão em miniatura, com os terroristas treinando e arregimentando novos candidatos que chegam de vários países islâmicos para enfrentar os "novos cruzados", respondendo aos apelos de Osama bin Laden e companhia.
O próprio general Ricardo Sánchez, comandante dos EUA no Iraque, já admitiu em entrevista à TV Fox que não pode entrar na cidade e que as incipientes forças de segurança iraquianas não têm poder para dominá-la.
Complicando o cenário, temos o aumento das ações dos extremistas islâmicos na Arábia Saudita (excitados pelo barulho na vizinhança), o endurecimento do regime iraniano (e, por conseqüência, de seu programa nuclear) e a violência interminável entre Israel e palestinos.
Para os EUA e para o resto do mundo, a única resolução positiva da aventura iraquiana será uma transição de poder que desemboque em algum tipo de democracia estável no Iraque.
Isso teria um poder transformador enorme nas mentes árabes e islâmicas, já que não há regime árabe democrático. É esse sufocamento político que alimenta o terrorismo niilista dos extremistas que hoje vêem no Iraque sua melhor chance de combater os EUA e seus aliados regionais.
Mas, para a democracia iraquiana vingar, os vizinhos do Iraque, as potências européias e a comunidade internacional como um todo têm de reconhecer que o futuro do país será vital para este início de século. A arrogância passada de Bush ainda atrapalha, mas mesmo ele está ficando um pouco mais humilde diante do tamanho do tombo mesopotâmico.


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