São Paulo, sábado, 31 de maio de 2008

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Em julgamentos comunitários, cidadãos decidem se vizinhos são culpados ou não

EM KIGALI (RUANDA)

Domingo de manhã numa sala de aula no distrito de Gikondo, em Kigali, e dois acusados de participação no genocídio estão sentados na primeira fila, vestindo uniformes de presidiário cor-de-rosa que lembram camisolões de hospital.
À sua frente estão cinco "juízes" e ao seu redor cerca de cem moradores da comunidade. Eles ajudarão os juízes a condenar ou não os réus.
Está em curso uma gacaca, uma inovação do sistema judicial ruandês. Por séculos, essas cortes comunitárias ajudaram a resolver disputas como roubo de gado ou invasão de propriedade (o termo significa "grama" no idioma local, em referência ao fato de que os julgamentos eram a céu aberto).
No fim da década passada, o governo ressuscitou o sistema para julgar crimes contra a humanidade. O argumento: se só fossem usadas cortes formais, seriam precisos mais de cem anos para os 120 mil acusados.
Cerca de 12 mil gacacas foram formadas, com juízes eleitos pela comunidade, as mesmas onde moravam os acusados e onde os crimes ocorreram. Por isso, muitas vezes são vizinhos julgando vizinhos.
Nas gacacas, o protocolo de um tribunal é substituído por um ambiente que lembra uma assembléia de condomínio, com berros e dedo na cara.
Na sessão que a Folha acompanhou, Jean Baptiste, um tipo magro, ar de intelectual e óculos de aro fino, se defendia da acusação de ter matado um estudante universitário.
"Eu não conhecia esse estudante...", justifica-se o acusado, ao que um dos juízes interrompe, dedo em riste: "Era um genocídio! Você não precisava conhecer! Bastava que ele fosse tutsi, e você, hutu!".
O julgamento é fortemente enviesado contra o acusado, que não tem testemunhas de defesa nem advogado para enfrentar uma platéia hostil.
"Se vocês encontrarem uma pessoa que me viu matando o estudante, eu me calo. Mas achem essa pessoa primeiro", desafia Jean Baptiste. Após duas horas, a sessão é adiada.
Os acusados, escoltados por dois policiais armados com fuzis, seguem de volta para suas prisões, à espera da decisão. (FZ)


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