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Ensaio - Holland Cotter

No Mali, mesquita molda a história

DJENNÉ, Mali - A expressão "Inshallah" ("se Deus quiser") é repetida em muitas conversas neste país da África ocidental e de maioria muçulmana. Nos últimos tempos, os malineses vêm sendo obrigados a confiar em Deus mais que de costume. A safra anual de milho chegou antes da hora. No fim do outono e no inverno, um grupo filiado à rede Al Qaeda lançou ataques contra europeus. A derrubada do governo deixou isolado um dos países mais pobres da África. Rebeldes tuaregues e forças islâmicas tomaram conta da parte norte do país, incluindo a cidade de Timbuktu. O turismo, vital para o país, sumiu.

Em cidades modernas como a capital, Bamaco, a cultura islâmica com freqüência ganha uma voz pop, com música religiosa tocando nas rádios. Em Djenné, cidade que há séculos é um centro de peregrinação, situada entre dois rios e acessível apenas por balsa, essa voz é mais tranqüila, suavizada pela tradição. Mas também está sendo moldada por intervenções modernas.

Foi apenas no século 13 que o islã dominou a cidade, mas a religião já chegava a Djenné havia séculos, através das rotas comerciais vindas do Mediterrâneo e do Oriente Médio. Caravanas de mercadores traziam estudiosos e escribas, muitos dos quais fundaram escolas corânicas e ateliês onde se produziam manuscritos.

A grande mesquita de Djenné é um dos monumentos religiosos mais reverenciados da África. Construída de tijolos de adobe revestidos de argila, é o maior exemplo remanescente de um estilo particular de arquitetura africana. Em 1988, a mesquita e as casas que a cercam ganharam status de Patrimônio Mundial da Unesco, o que gera problemas.

"Patrimônio" deixa implícito que a construção é antiga, mas não é o caso. A mesquita original, que datava do século 13 ou 14, desapareceu há muito tempo. Foi apenas em 1907, quando Djenné já se tornara um posto colonial francês, que a mesquita atual foi erguida no mesmo local.

O arquiteto, Ismaila Traoré, empregou materiais tradicionais, incluindo inserções de troncos de palmeira. Mas o design geral segue o estilo neo-sudanês promovido pelos franceses.

E a construção continua a mudar. O clima da região, alternadamente quente e chuvoso, promove o surgimento de vazamentos. Por isso, a cada ano a mesquita precisa receber um novo revestimento de adobe, que é dado pelos cidadãos numa festa chamada "Crépissage de La Grand Mosquée" ("Reboco da Grande Mesquita").

A aplicação de sucessivos camadas novas de reboco modificou a mesquita sutilmente, arredondando e suavizando seus contornos. Mas o reboco acumulado enfraqueceu a estrutura. Em 2006, a Fundação Aga Khan de Cultura, com sede em Genebra e dedicada à conservação de obras arquitetônicas de adobe, declarou a mesquita em risco de desabamento e deu início a uma restauração extensa, que mudou sua forma outra vez: curvas e irregularidades viraram ângulos e linhas retas bem definidos.

A fundação pediu que a rebocadura anual fosse sustada durante o processo de restauração, privando Djenné não apenas de um feriado e de turismo, mas também de ganho espiritual: a reparação anual garante "baraka", ou bênçãos, aos cidadãos.

Enquanto isso, a política também ameaça paralisar um projeto importante na adjacente Biblioteca de Manuscritos de Djenné, onde, com o patrocínio do programa de Arquivos em Risco da Biblioteca Britânica, de Londres, está em curso um trabalho de preservação e digitalização de milhares de manuscritos arábicos. Entre eles, há cópias manuscritas do Corão, tratados médicos, científicos e legais, livros de magia e transcrições de história oral.

A maioria deles pertence a famílias locais e se encontra em estado precário. Uma campanha para persuadir proprietários a confiar seus manuscritos à biblioteca de Djenné teve êxito e hoje 40 mil imagens já estão on-line. Mas surgiram conflitos.

Alguns religiosos querem preservar manuscritos corânicos, mas não os de magia ou história oral, que consideram heresias.

Há atitudes culturais diferentes em jogo. O Ocidente é a favor do acesso instantâneo e da revelação plena e neutra. O islã ortodoxo defende que as idéias sejam reveladas de modo discriminado e aos poucos; é a favor da primazia do mistério sobre o conteúdo ou, pelo menos, da igualdade de importância dos dois.

O que está em jogo é quais crenças e vieses vão moldar o modo como é narrada a história de Djenné, que é uma parte crucial da história do islã na África. A ONU está preocupada com a segurança de manuscritos semelhantes em Timbuktu, desde que rebeldes saquearam o Instituto Ahmad Baba.

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