São Paulo, segunda-feira, 04 de abril de 2011

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Uma ameaça desprezada pelos engenheiros

Por NORIMITSU ONISHI
e JAMES GLANZ


TÓQUIO - Em um país que deu ao mundo a palavra "tsunami", a comunidade nuclear japonesa em geral desconsiderou a força potencialmente destrutiva das paredes de água. A palavra nem sequer aparecia nas diretrizes do governo até 2006, décadas depois de as usinas -inclusive a de Fukushima Daiichi, que as autoridades ainda lutam para controlar- começarem a salpicar o litoral japonês.
A falta de atenção pode explicar em parte como, em um país-ilha cercado por placas tectônicas em movimento que comumente produzem tsunamis, as proteções eram tão tragicamente minúsculas, comparadas com o tsunami de quase 14 metros que atingiu a usina de Fukushima em 11 de março. A onda tinha aproximadamente o triplo da altura do promontório de 4 metros sobre o qual a usina fora construída.
O governo japonês e as autoridades dos serviços públicos disseram diversas vezes que os engenheiros jamais poderiam ter previsto o terremoto de magnitude 9.0 -de longe o maior da história japonesa. Mesmo assim, sismólogos e especialistas em tsunamis dizem que, segundo dados facilmente disponíveis, um terremoto de magnitude de apenas 7.5 -quase rotineiro na Borda do Pacífico- poderia ter criado um tsunami grande o suficiente para superar o barranco de 4 metros em Fukushima.
Depois que um grupo assessor emitiu recomendações não compulsórias em 2002, a Companhia de Energia Elétrica de Tóquio, dona da usina e maior empresa de utilidade pública do Japão, aumentou sua projeção de nível máximo de tsunami em Fukushima Daiichi para entre 5,4 e 5,7 metros -consideravelmente mais alto que o barranco de 4 metros. Mas a companhia pareceu reagir aumentando apenas o nível de uma bomba elétrica perto da costa em 20 centímetros, supostamente para protegê-la de enchentes.
"Só podemos trabalhar com base em precedentes, e não havia precedente", disse Tsuneo Futami, ex-engenheiro nuclear da Elétrica de Tóquio que foi diretor de Fukushima no final dos anos 1990. "Quando eu dirigia a usina, a ideia de um tsunami nunca passou por minha cabeça."
A intensidade com que o terremoto abalou o solo em Fukushima também superou os critérios usados no projeto da instalação, embora por um fator menos significativo que o tsunami, segundo dados que a Elétrica de Tóquio deu ao Fórum Industrial Atômico do Japão, um grupo profissional. Com base no que se conhece hoje, o tsunami provocou a crise nuclear ao inundar os geradores de apoio necessários para movimentar o sistema de resfriamento do reator.
Durante décadas, porém, autoridades japonesas e mesmo partes de sua comunidade de engenheiros usaram preceitos científicos mais antigos para proteger as usinas nucleares, contando fortemente com registros de terremotos e tsunamis e deixando de utilizar avanços na sismologia e avaliação de riscos desde a década de 1970.

Evolução de projetos
Quando os engenheiros japoneses começaram a projetar suas primeiras usinas de energia nuclear, há mais de 40 anos, procuraram no passado pistas sobre como proteger suas centrais. Os arquivos oficiais de séculos de idade continham informação sobre tsunamis que haviam inundado aldeias costeiras, permitindo que os engenheiros estimassem sua altura.
Por isso, foram erguidos diques mais altos que os maiores tsunamis registrados. Em Fukushima, as autoridades da Elétrica de Tóquio usaram como ponto de referência um tsunami contemporâneo -uma onda de 3,2 metros de altura causada por um terremoto de magnitude 9.5 no Chile em 1961. O barranco de 4 metros sobre o qual a usina foi construída serviria como um dique natural, segundo Masaru Kobayashi, especialista em resistência a terremotos da Agência de Segurança Industrial e Nuclear, o órgão regulador da energia nuclear no Japão.
Os engenheiros adotaram uma abordagem semelhante com os terremotos. Quando chegou a hora de projetar a usina de Fukushima, os registros oficiais datando desde 1700 mostravam que os terremotos mais fortes ao largo da atual Prefeitura de Fukushima haviam atingido magnitude entre 7.0 e 8.0, disse Kobayashi.
Mas esses métodos não levaram em conta incertezas como falhas que não tinha sido descobertas ou terremotos que foram gigantescos, mas raros, disse Greg S. Hardy, engenheiro estrutural da Simpson Gumpertz & Heger que é especializado em usinas nucleares e risco sísmico. Ele visitou Kashiwazaki depois do terremoto de 2007 como parte de um estudo patrocinado pelo Instituto de Pesquisa de Energia Elétrica.
"Deixamos para os especialistas", disse Masatoshi Toyoda, um vice-presidente aposentado da Elétrica de Tóquio que supervisionou a construção da usina. Com o tempo, especialistas de comitês do governo começaram a pressionar por códigos de construção mais rígidos. Essa pressão cresceu exponencialmente depois do devastador terremoto de Kobe em 1995, segundo Kenji Sumita, que foi vice-presidente da Comissão de Segurança Nuclear do governo no final da década de 1990. Sumita disse que as companhias de energia, que estavam concentradas em concluir a construção de uma dezena de reatores, resistiam a adotar critérios mais duros.

Riscos ignorados
A primeira referência clara a tsunamis apareceu em novos critérios para as usinas nucleares japonesas emitidos em 2006. O risco havia recebido atenção em 2002, quando a Sociedade Japonesa de Engenheiros Civis publicou orientações sobre tsunamis para as operadoras nucleares.
Um grupo de estudos da sociedade, que incluía professores e representantes de empresas como a Elétrica de Tóquio, avaliou dados de antigos tsunamis, assim como novas pesquisas sobre linhas de falha e a geografia local, para chegar às diretrizes.
Na última reunião, realizada pouco mais de uma semana antes do último tsunami, os pesquisadores discutiram a utilidade de simulações tridimensionais para prever os danos potenciais de tsunamis para as usinas nucleares, segundo as atas dessas reuniões.
Talvez a mais triste observação dos cientistas fora do Japão seja que, mesmo pela lente estreita dos tsunamis registrados, o potencial de que poderiam facilmente superar as salvaguardas em Fukushima deveria ter sido reconhecido. Em 1993, um terremoto de magnitude 7.8 produziu tsunamis com alturas superiores a 9 metros ao largo da costa ocidental do Japão, causando ampla devastação.
E mesmo o passado distante produzia informações que poderiam ter servido como novas advertências. Duas décadas depois de Fukushima Daiichi entrar em operação, pesquisas examinando antigos registros estimaram que um terremoto havia de fato produzido um tsunami que alcançou quase 2 quilômetros terra adentro em uma área pouco ao norte da usina. Esse tsunami ocorreu em 869.

Colaboraram Norimitsu Onishi, Ken Belson e Hiroko Tabuchi, em Tóquio, e James Glanz, de Nova York



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