São Paulo, segunda-feira, 28 de março de 2011

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ANÁLISE DO NOTICIÁRIO

Desafiando sanções, um déspota sobrevive

Da Costa do Marfim, lições para tiranos sitiados

Por ADAM NOSSITER

ABIDJÃ, Costa do Marfim - Na superfície, as duras sanções internacionais parecem estar funcionando contra Laurent Gbagbo, o homem que se recusa a ceder o cargo depois de perder a eleição no ano passado. Antes um porto pujante, Abidjã hoje está tranquila, com fábricas e lojas fechadas. No entanto, abaixo dessa realidade, outra ainda se impõe.
Gbagbo continua no poder na Costa do Marfim, mais de três meses após perder a eleição. Ele continua arranjando paliativos temporários para a economia abalada: neste mês, declarou que o governo assumirá a compra e exportação de cacau, o principal produto do país. Gbagbo continua eliminando brutalmente a dissidência. Noite após noite, na TV estatal, acusa ONU, França e EUA pelos problemas -com efeito poderoso na população.
É uma escola para autocratas sitiados: desacelerar, reduzir, acusar. Nenhum diplomata, analista político ou cidadão comum aqui pode prever com confiança quanto tempo Gbagbo vai durar, mesmo que seu faturamento seja uma fração do que já foi. As receitas da alfândega no porto caíram mais de 96%, segundo alguns diplomatas, e ele enfrenta o isolamento diplomático quase total.
Mas existem bons motivos para a relutância nas previsões que envolvem sua queda.
"Será uma sombra da economia que foi, mas não é preciso uma economia próspera para ficar no poder", disse um diplomata que preferiu manter o anonimato. "Ele pode arrasar a economia e continuar no poder. Se superar o mês de março, acho que poderá ficar aqui 20 anos."
Uma das últimas expressões constantes e pacíficas de dissidência pública aqui -mulheres protestando com ramos que simbolizam a paz- foi arrasada por rajadas de metralhadora das forças de segurança de Gbagbo. A organização Human Rights Watch disse, em 15 de março, que essa repressão contra os civis "dá todos os indícios de representar crimes contra a humanidade".
Na rua, os funcionários públicos se reuniram em torno dos bancos estatais, esperando para ser pagos, mas não houve tumultos. Os bancos estrangeiros fecharam depois que o banco central regional isolou Gbagbo, bloqueando imediatamente cerca de 93% das contas bancárias, segundo diplomatas e banqueiros.
"Eles vão pagar todo mundo", disse Yao Kouame, um professor, esperando no bairro central de Plateau, em Abidjã.
"Não paramos de trabalhar", disse outro funcionário. "Não vamos morrer de fome."
Outros haviam preparado uma torrente de impropérios contra o presidente Obama. Os Estados Unidos são considerados quase tão culpados quanto a França no discurso de Gbagbo, e as declarações antiocidentais da véspera na emissora estatal vêm rapidamente aos lábios de funcionários do governo e soldados de Gbagbo, um tributo à eficácia da máquina de propaganda oficial.
Até a força de paz das Nações Unidas, uma das poucas proteções para civis contra as forças de segurança de Gbagbo, embora limitada, é retratada como "terrorista" e, em uma transmissão recente, "não escondem mais sua determinação a desestabilizar a Costa do Marfim".
O fechamento dos bancos prejudicou principalmente a pequena classe média e a elite que cercam Gbagbo. Poucos marfinenses tinham contas bancárias antes da crise, talvez não mais que 7%. Por isso, enquanto parte do comércio fechou, as bancas de frutas e legumes, açougues e pequenas lojas continuam funcionando em muitas partes desta capital comercial.
"Os operadores econômicos estão se adaptando muito bem", disse um importante banqueiro local. "Transformamo-nos em uma economia em dinheiro vivo."
A Costa do Marfim é o principal produtor mundial de cacau, e a medida de Gbagbo de assumir a compra e exportação dos grãos permite que ele entre em um setor que representa talvez 20% do Produto Interno Bruto do país, segundo diplomatas.
Em seguida, na opinião de alguns empresários do setor cacaueiro, poderá haver a apreensão pelo governo do enorme estoque de cacau que vale até US$ 1,5 bilhão, guardado em armazéns.
O vencedor internacionalmente reconhecido da eleição do ano passado, Alassane Ouattara, também pediu uma suspensão das exportações, que as grandes companhias de cacau respeitaram amplamente. Assim, grupos de estivadores desempregados esperam sentados. "Todos os dias, estamos aqui, e não há nada", disse um deles, Ouma Diarra. "Não há barcos entrando.
Nós chegamos de manhã e esperamos. Agora, não há trabalho."
Alguns analistas dizem que Gbagbo não dura além de maio. Um aumento no preço do combustível poderá provocar descontentamento popular, afirmam outros. Outros ainda dizem que cada dia que Gbagbo permanece no poder é uma vitória para ele.
"Ele está perdendo terreno, mas ainda detém o controle", disse outro diplomata. "Não vejo o fim do jogo aqui."


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