São Paulo, segunda-feira, 29 de junho de 2009

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INTELIGÊNCIA/Roger Cohen

Armados de indignação

Teerã
Recebi muita correspondência desde que cheguei ao Irã, alguns dias antes das disputadas eleições de 12 de junho. A festa nas ruas que acontecia então, comemoração de uma campanha vigorosa e vibrante, deu lugar a uma repressão brutal por um regime decidido a afirmar que a votação foi limpa e que os milhões de eleitores iranianos enfurecidos não têm motivos para acreditar em fraude. Nunca vi tanta euforia se transformar em angústia da noite para o dia.
Acho que foi isso que afetou tantas pessoas ao redor do mundo: a sensação de uma população iraniana atraída para a esperança e depois atirada no inferno, resistindo na rua com pedras. Qualquer pessoa que esteve aqui e testemunhou esse golpe nas urnas não pode duvidar de que foi isso que aconteceu. E não se comemora uma vitória com dois terços dos votos espancando mulheres nas ruas e prendendo os principais assessores de seu adversário. Mas foi assim que o presidente Mahmoud Ahmadinejad decidiu marcar sua reeleição para mais quatro anos, e foi esse o destino de qualquer assessor importante de seu adversário, Mir Hossein Mousavi.
Há correspondências de todo tipo, mas basicamente trata-se de uma solidariedade global do espírito humano. Assim como o homem solitário parado diante do tanque na praça Tiananmen, há 20 anos, enfrentou o aço somente com a vontade, os manifestantes nas ruas de Teerã, especialmente as jovens iranianas, enfrentaram o regime armados apenas com sua indignação furiosa. O protesto no centro da cidade na segunda-feira após a votação, que reuniu cerca de 3 milhões de pessoas, foi de uma dignidade intensa, um dos eventos mais comoventes que já presenciei. As lutas intermitentes nas ruas desde então viram a agressão sancionada pelo Estado confrontando a indignação de amplas camadas da sociedade.
Um iraniano-americano escreveu para mim dos EUA para agradecer pelo fato de que, pela primeira vez em décadas, ele pode responder a perguntas sobre de onde é sem se preparar para que uma sombra cruze o rosto de seu interlocutor. Pelo contrário, ele comentou, agora quando diz “Irã” é mais provável que receba um sorriso, um abraço ou um olhar de admiração. Essa transformação na percepção dos americanos, é claro, é obra da corajosa população do Irã.
É uma mudança importante. Os países podem ser facilmente transformados em caricaturas. O ex-presidente dos EUA, George W. Bush, colou o Irã no “eixo do mal”. Imagens negativas eram praticamente tudo o que o Ocidente recebia do Irã: mulás loucos decididos a obter uma bomba atômica o mais rápido possível para depois atacar Israel e o mundo. Esta eleição presidencial foi amplamente rejeitada como uma insignificante camuflagem democrática de uma ditadura religiosa. Em uma visita anterior ao Irã, no início deste ano, quando tentei pintar uma imagem matizada de uma sociedade sem liberdade que no entanto oferecia margens de liberdade e demonstrava grande sofisticação e vitalidade, os críticos correram para acrescentar ao meu nome o rótulo de “apologista iraniano”. Ao mesmo tempo, inúmeros iranianos no exílio escreveram para me agradecer por romper o estereótipo fácil.
Hoje o Irã está mais em foco. Três décadas após a revolução, o regime mostrou-se mais brutal, mais impiedoso do que parecia possível em janeiro passado. Ao mesmo tempo, a sociedade iraniana demonstrou ao mundo a força de seus anseios cívicos e democráticos e expôs a mentira de um fanatismo generalizado. E o fez com tanto valor que ninguém que o testemunhou esquecerá. Qual dessas forças —a reação repressiva ou o ímpeto pluralista— se mostrará mais forte é difícil dizer. Mas tenho certeza de que, a menos que se adapte, a ordem revolucionária no Irã ficará tão alienada da sociedade a ponto de se tornar insustentável. Milhões de pessoas passaram da aquiescência relutante ao antagonismo declarado ao regime nas últimas semanas.
Acredito que, nos próximos meses, o Irã poderá tentar usar as negociações com os EUA como um meio de compensar a revolta doméstica. Barack Obama deve avaliar cuidadosamente: o restabelecimento das relações bilaterais é de grande interesse para o mundo, mas não pode ocorrer às custas daqueles que derramaram seu sangue nas ruas de Teerã. O regime acaba de remover os obstáculos para a normalização. Também perdeu uma grande oportunidade de demonstrar que as duas palavras em sua autodescrição —República Islâmica— significam alguma coisa.

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